Holocausto da família

João César das Neves
DN 2000.01.31

Os inícios do século XX ficaram marcados por uma luta terrível contra um dos valores civilizacionais mais importantes, a liberdade. O século XX termina no meio de uma luta terrível contra outro valor civilizacional essencial, a família.
Em menos de cem anos, dois dos fundamentos mais preciosos da civilização foram fortemente atacados. A primeira dessas lutas, pela liberdade, teve o seu auge em meados do século e foi já, em grande medida, ganha. A outra, pela família, é a actual, ainda em pleno fragor com resultado incerto. O que está em causa, como antes, é a sobrevivência da sociedade livre e equilibrada.
No princípio do século, as ideologias comunista e fascista, na frescura da sua novidade, apregoavam uma alternativa original para o falhado sistema político de então. Nazis e marxistas, desprezando a liberdade, defendiam o poder do Fuhrer, do Duce e a ditadura do proletariado. Inspiradas na pureza da raça ou na superioridade dos operários, as novidades tinham em comum desprezar as "democracias" velhas e obsoletas e apregoar o totalitarismo como a salvação.
Hoje é difícil compreender como essas ideias, entretanto derrotadas, foram atraentes e credíveis durante tanto tempo. É difícil aceitar que a democracia, que conhecemos flexível e dinâmica, pudesse aparecer incapaz e desorientada aos nossos avós. Mas assim como não percebemos como é que tantas comunidades civilizadas cederam aos ataques à liberdade, daqui a umas décadas também será difícil compreender a forma como agora deixamos destruir a família.
Considerar as terríveis tentações políticas antigas ajuda-nos a resistir às seduções que agora nos dominam. Aliás, a semelhança e o paralelo entre os dois combates é notável.
A primeira semelhança está na dissimulação. Se virmos bem, ninguém hoje ataca a família. O que atacam é a opressão da mulher, a prisão cultural do matrimónio, o desprezo pela homossexualidade, os problemas do fosso das gerações. A solução proposta para esses dramas é o abandono da família chamada "tradicional", e a promoção de novas variantes familiares.
Do mesmo modo, os comunistas e os nazis não atacavam a liberdade. O que eles queriam era acabar com a opressão dos operários, a rigidez social antiquada, o desprezo pela raça ariana, os problemas da desordem social. A solução para esses dramas era o abandono da democracia chamada "tradicional" e a promoção de novas variantes sociais. Muitos acreditaram nisso.
Era indiscutível então que quer comunistas quer fascistas tinham razão em muitas das suas críticas. Mas isso não tornava bons os sistemas extremistas que defendiam. Também hoje, os problemas familiares são vários. E devemos preocupar-nos com eles e, sobretudo, com os muitos que sofrem em famílias destroçadas.
Mas isso não quer dizer que se rejeite a família só porque algumas têm problemas. Não faz sentido, por exemplo, que, para mostrarmos o nosso carinho e apoio pelos cegos, tenhamos de dizer que a visão é coisa má.
Os argumentos e os métodos usados antes contra a democracia também são semelhantes aos que hoje se utilizam contra a família. Até a inspiração filosófica é equivalente. Marxistas e hitlerianos consideravam-se defensores da verdadeira natureza humana, libertando-a dos tabus, complexos e invenções de milénios de degradação. Diziam eles que a força e a violência eram naturais ao homem, enquanto o artificialismo dos sistemas democráticos era evidente. Os que hoje defendem o amor livre, o divórcio, as uniões de facto e a homossexualidade também se arrogam a representação da natureza, contra a artificial "família tradicional". A família, que existe desde que o mundo é mundo, não lhes parece ser natural. Quem defende a fidelidade conjugal, o pudor ou a castidade é desprezado como ingénuo e sonhador. Exactamente como os defensores da democracia eram desprezados pelo realismo totalitário do princípio do século. Hoje muitos pensam que, nos hábitos sexuais, a raça humana é semelhante aos cães. Hitler e Lenine pensavam o mesmo.
Quanto aos métodos usados, é difícil ser mais semelhante. Os meios de comunicação social têm papel privilegiado no combate contra a família, tal como com Goebbels e Estaline contra a liberdade. Telenovelas, revistas juvenis, publicidade, reportagens e opinião jornalística, filmes e séries apresentam com toda a normalidade o descontrolo sem freio do prazer sexual e recomendam-no como forma de vida. Na televisão, o corrente são as "famílias alternativas"; a família normal só aparece como curiosidade exótica.
Se muitos apostam nas campanhas de intoxicação da opinião pública contra a família, outros preferem os mecanismos legais. Também, para matar a democracia, Hitler usou as eleições democráticas e Lenine os movimentos populares. Hoje utiliza-se o "planeamento familiar" para atacar a família, usa-se a "educação sexual" para distorcer os hábitos dos jovens, empregam-se as instituições de saúde para destruir a vida dos nascituros e os direitos humanos para legalizar o aborto. A ironia perversa não podia ser mais semelhante.
O resultado das duas lutas começa também a parecer-se. Os ataques à liberdade criaram o pior morticínio de toda a História, a II Guerra Mundial, e o confronto mais estúpido de todos os tempos, a guerra fria.
A luta contra a família ainda está longe do seu termo. Mas já há muitos que comparam as mortes de crianças inocentes nos abortos com o Holocausto e o Gulag.
E, por outro lado, tal como o totalitarismo mostrou o valor da liberdade, também a instabilidade e o sofrimento causado pelas uniões de facto, casais homossexuais, mães de aluguer e aborto livre mostram à evidência a sabedoria e o equilíbrio da família tradicional.
É muito difícil encontrar hoje defensores da família, tal como no início do século havia poucos combatentes da liberdade. O que há agora são muitos paladinos da democracia. Foi sempre muito fácil combater na guerra que já está ganha.
João César das Neves assina esta coluna à segunda-feira

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