Ciência e finalidade

João César das Neves DN, 27 de Julho de 1998

Escrevi aqui recentemente alguns artigos onde fazia considerações menos respeitosas sobre a ciência. A reacção de estranheza, por parte de amigos ou desconhecidos, foi muito superior ao interesse que os meus humildes textos costumam despertar. De tal forma que me decidi hoje a romper uma das minhas regras, e abordar o tema directamente.
Um dos princípios que procuro seguir é a de não escrever na Imprensa sobre textos da Imprensa. Tenho uma consciência muito viva de que, neste extraordinário Portugal, único no mundo, existe uma terrível praga que tem empestado o País, pelo menos desde D. João I: a elite nacional, pomposa e balofa. E uma das mais claras manifestações da sua esterilidade intelectual é esta tendência de escrever textos sobre outros textos, próprios ou alheios. Assim sendo, a Imprensa e, em geral, a cultura nacional entram em círculo vicioso, alimentando a banalidade. Daí esta minha regra básica. Mas, por uma vez, vou, com desculpas, quebrá-la por motivo de força maior.
Os meus recentes textos sobre a ciência tinham dois objectivos, um patente e outro de fundo. Este talvez tenha ficado menos claro, e vale a pena elucidar.
Em primeira linha, eu pretendia desmistificar a fé inabalável que o nosso tempo tem na ciência. Numa época que se arroga sem tabus, mitos e superstições, que repudiou a metafísica e esqueceu a religião, existem alguns dogmas de fé laicos que são tão irracionais como os ritos tribais. Um deles é acerca da ciência.
Longe de mim recusar os sucessos maravilhosos que a abordagem científica e experimental conseguiu nos últimos séculos, e a profunda influência que a sua disciplina intelectual teve na vida do dia-a-dia. Não há qualquer dúvida que eles mudaram o mundo. Como cientista, conheço bem o seu valor único.
Mas é essencial olhar cientificamente para os resultados da ciência. Eles querem dizer apenas o que eles querem dizer e não aquilo que alguns fanáticos querem que eles digam. Isso significa, por exemplo, que as ciências humanas estão longe de conseguir resultados abrangentes e garantidos. São claros os enormes avanços da economia, da sociologia, da psicologia. Mas é também claro que elas não podem responder àqueles muitos que nelas procuram solução seguras e "científicas" para o desemprego, a pobreza ou a educação dos filhos.
E nas ciências físicas, onde os métodos científicos mais se adaptam, a sucessão de paradigmas e de teoremas, por modificação de hipóteses, mostra bem a fluidez de uma abordagem que muitos tomam por sólida. Os modelos abandonados, como os de Conte, Lamarck ou Keynes, não são menos científicos por isso.
O principal erro dos que adoram a ciência, que é um erro científico, é confundir ciência com verdade. Um resultado, por ser científico, garante coerência, lógica e rigor, mas não garante verdade. Porque essa coerência, lógica e rigor estão dependentes das hipóteses de partida. Arquimedes pedia um ponto de apoio para levantar o mundo. Não levantou. O busílis da ciência tem sido sempre esse ponto de apoio, a hipótese de partida do teorema, que é a sua fraqueza essencial.
Mas existe uma outra ideia mais profunda e mais importante neste tema. E essa tem a ver, não com a resposta, mas com a pergunta. Prende-se ela com a orientação geral da ciência. Só se pode fazer ciência sobre causas e sobre mecanismos. Assim sendo, a ciência não pode deixar de olhar apenas para os princípios, para as origens e, na melhor das hipóteses, para as suas consequências. Mas essa não é a questão principal do ser humano. O problema central do homem é a finalidade. E aqui é que a atitude científica exclusivista, ao desprezar outros modos de conhecimento, se torna indesculpável.
A humanidade encontra-se como alguém viajando num automóvel por uma estrada. A ciência, que apenas trabalha em causas, pode ajudar o viajante no funcionamento do carro. Mas uma coisa que a ciência nunca pode fazer é dizer algo sobre o destino da viagem. Que, convenhamos, é a questão central para alguém que se encontre viajando num automóvel por uma estrada.
A questão teleológica foi, naturalmente, a primeira que se levantou ao ser humano. Antes de querer saber de onde vem a chuva ou porque se mexem as estrelas, o homem sempre quis saber o que lhe ia acontecer. Quando o pensamento humano atingiu a maturidade, com Platão e, sobretudo, Aristóteles, a sua abordagem sistemática da realidade era centrada na finalidade. Claro que Aristóteles também fez observações e experimentações científicas. Devemos-lhe, aliás, a origem da maioria das ciências actuais. Mas ele sabia que essa não era a pergunta que mais interessava, e por isso construiu a metafísica.
A grande maioria dos pensadores que se lhe seguiram, até ao século XIII, desenvolveram esta abordagem. O maior edifício intelectual da História, de São Tomás de Aquino, também tem uma orientação fundamental no sentido da finalidade das coisas.
Mas, depois do nominalismo do século XIV e da confusão das guerras religiosas do século XVI, a atitude intelectual esqueceu a finalidade e centrou-se na compreensão da origem e dos mecanismos.
Os surpreendentes sucessos da nova abordagem científica contribuíram ainda mais para esquecer a finalidade.
Encontramos alguns pensadores posteriores que recolocaram a questão das finalidades, como Kant, Hegel e Marx. Mas, nessa altura, já esta atitude tinha deformado o espírito humano.
Kant tratou a questão do destino da viagem partindo do princípio de que os vidros do automóvel estavam tapados e nada se pode dizer sobre a estrada. Hegel considerou que o automóvel se movia sobre carris predefinidos, enquanto Marx esqueceu a estrada e centrou-se no vida dentro do automóvel.
Neste final de milénio, gozando de uma prosperidade que a ciência lhe deu, a humanidade sente-se mais perdida do que nunca. A patética impotência que a ciência mostra perante os angustiantes problemas do nosso tempo revela que a questão não está na resposta, mas na pergunta.

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