Educação sentimental

António Lobo Antunes
Visão 30.06.2016

Nunca lhe dei um beijinho e só Deus sabe a pena que tenho de lhe não ter dado um beijinho. Numa escola fascista, de professores na sua maioria muito medíocres, a Senhora Dra. foi para mim um oásis de ternura, compreensão e, atrevo-me a dizer, afecto

A minha vida de estudante foi um tormento para os meus pais e uma maçada horrível para mim. Nenhuma disciplina, desde os seis anos, quando me puseram num colégio pequeno e modesto, em Benfica, dirigido por um professor que era uma besta de estupidez e violência, até ao fim do secundário, nada do que pretendiam ensinar-me me interessava. Passei onze anos a olhar pela janela e a afligir os meus pais. Quando foi do exame para entrar no liceu a minha mãe, coitada, espreitou de fora da sala e até ao fim da sua vida contava que eu, em lugar de escrever respostas, estava sentado ao contrário na carteira a ver as árvores do pátio. Pediu várias vezes aos professores que me colocassem na primeira fila: as suas preces não foram atendidas e eu permanecia numa carteira cá atrás, a pensar noutra coisa. Em quê? Não me lembro já, lembro-me apenas que aquilo me aborrecia de morte e que nem os professores nem os colegas me diziam fosse o que fosse. A única coisa agradável era quando não havia aula e aí corria para a biblioteca, pedia sempre o mesmo livro, os Contos de Fialho de Almeida, e ficava uma hora a ler e a reler sempre o mesmo, logo o primeiro, que se chamava A Ruiva, a história de uma prostituta, de que ainda recordo frases inteiras. Fialho de Almeida foi a minha primeira admiração literária, para além de provocar em mim graças à Ruiva, uma excitação que eu, com onze ou doze anos, não entendia, mas me acendia na alma e no corpo um prazer confuso que me transportava. Já nesse tempo as únicas coisas que me interessavam era escrever, ler ler ler e jogar óquei.
O meu pai herdara de um tio, que não conheci, primeiras edições da obra completa de Herculano, Ramalho, Eça, Fialho, Guerra Junqueiro, outros autores e eu devorava aquilo tudo num prazer antropofágico. Sabia páginas de cor. Cagava nas aulas e na matéria que pretendiam impingir-me. E houve uma professora de Português que foi a única a marcar-me profundamente. Era uma senhora de cabelos grisalhos, suave e bondosa, que recordo com muita saudade e respeito, a Senhora Dra. Adélia Barros. A cada redação que tínhamos de fazer lia a minha à turma e profetizava aos meus colegas, com quem me dava pouco porque aquilo que os atraía nada tinha que ver comigo, que eu ia ser um grande escritor, com uma admiração que me deixava confuso e envergonhado. Tinha dez, onze anos e os seus elogios, que me enchiam de orgulho, enchiam-me também de estranheza, porque aquilo que conseguia fazer era tão inferior em relação àquilo que eu desejava. Queria ir mais longe que esses escritores, sabia que se trabalhasse muito, durante muitos anos ou, pelo menos, estava ferreamente convencido disso, seria capaz de chegar mais longe do que eles e entrar no coração do coração da vida e dos homens. Riscava, recomeçava, destruía tudo e, como o meu irmão João deixou muito mais tarde impresso num dos seus livros, tudo o que eu produzia acabava raivosamente no cesto dos papéis. O resto era-me igual ao litro e parecia-me claro que estava longíssimo do que era necessário fazer e me levaria necessariamente não sabia quanto tempo até lograr aproximar-me do que não entrevia bem mas sabia existir. E os meus sete anos de liceu Camões foram isto, uma insatisfação permanente, uma luta constante, notas miseráveis nas várias disciplinas, e só não reprovava porque o meu avô tinha um camarada do Colégio Militar professor no Camões, que me arranjava as notas do último período, falando com os colegas, de modo a eu não reprovar. Acabei o liceu com dezasseis anos e comuniquei ao meu pai que queria empregar-me numa livraria em lugar de estudar. Ou, pelo menos, tirar o curso de Letras. O meu pai argumentou que, se eu queria escrever, o melhor seria tirar um curso científico, que me ajudaria a disciplinar o pensamento, de modo que a Faculdade de Letras, com a vantagem adicional de ter raparigas bonitas, desapareceu do horizonte. Ainda com dezasseis anos matriculei-me em Medicina e lembro-me de, pouco antes, encontrar a Senhora Dra. Adélia Barros, por quem conservo uma ternura e uma gratidão imensas e que hoje está certamente no Céu porque tem de haver um Céu para as pessoas como ela, que me perguntou
– O que vais tu estudar, Antunes?
Respondi-lhe que Medicina e nunca esquecerei a desilusão da sua cara. Foi a primeira pessoa que acreditou na minha capacidade, qual a primeira, a única. Recordo-me, sílaba por sílaba, do que ela me disse:
– Não tens o direito de deixar de escrever porque tu
e calou-se emocionada como se estivesse a assistir à morte de alguém que tinha uma certa importância para ela. Ainda hoje, quando escrevo, penso em si, Senhora Dra., e tento não a desiludir. Sei que, esteja onde estiver, me há-de ler, e quero muito que se sinta orgulhosa de mim porque me deu força e ânimo, porque estava certa que eu ia mudar a literatura. Eu não seria o escritor que sou se não fosse a sua fé, a sua certeza e isto é algo que não poderei pagar. Nunca lhe dei um beijinho e só Deus sabe a pena que tenho de lhe não ter dado um beijinho. Numa escola fascista, de professores na sua maioria muito medíocres, a Senhora Dra. foi para mim um oásis de ternura, compreensão e, atrevo-me a dizer, afecto, e pode crer que ficará comigo até ao fim da minha vida.
Portanto fui para Medicina, onde também não estudava, escrevia. Mas, a partir de certa altura, comecei a gostar, quando o ensino passou do cadáver para as pessoas doentes. Tive alguns mestres notáveis, colegas de quem, pela primeira vez na minha vida de estudante, fiquei amigo. O meu irmão João ajudou-me imenso e, se tirei o curso, a ele o devo. E compreendia e aceitava que eu escrevesse. Vivemos juntos mais de vinte anos e ele sublinhava o que eu tinha de decorar, em alguns exames estava cá fora à minha espera, preocupado comigo. O João é um homem invulgar, aparentemente distante, aparentemente frio, de uma alta inteligência, de uma bondade cheia de pudor, de uma atenção vigilante por baixo de uma indiferença aparente. Se não fosses tu, mano, eu não seria quem sou. Tu não me deves seja o que for. Eu devo-te imenso. Claro que não mostro mas pronto, confesso, adoro-te, respeito-te, admiro-te. E depois o nosso Pai acho que começou a entender. Nunca me disse peva, eu nunca lhe disse peva mas, às vezes, escapava-lhe uma frase ou outra para os meus irmãos. E realmente, Pai, tinha razão em aconselhar-me a tirar Medicina. Julgo que fui um médico honesto, o sofrimento das pessoas custava-me muito. E não cessava de escrever. Não cesso de escrever. Até ao fim não cessarei de escrever. Pode ser que ajude a aliviar um bocadinho o sofrimento das pessoas também.

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