Offshores, a última conquista de Abril

Helena Matos
Observador 1/5/2016

Ironias de Abril, em 1974, nem empresários nem políticos tinham dinheiro fora de Portugal. Hoje as elites não acreditam no país quanto baste para lhe entregar o seu dinheiro.

Quem ouvisse a conferência de imprensa dada pelos ministros Mário Centeno e Eduardo Cabrita esta quinta-feira acreditaria que os offshores são um assunto da maior relevância para a saúde das finanças públicas portuguesas. Compromissos com Bruxelas acerca do deficit, detalhe das medidas avançadas no Plano de Reformas e no Programa de Estabilidade, quais impostos vão aumentar… nada disso importou. O que havia para anunciar era uma série de medidas para combater os offshores.
Neste Abril de de 2016 partimos literalmente falando à conquista dos offshores.
Convenhamos que a técnica não é nova: face às más notícias ou à necessidade de criar uma barreira protectora em torno dos governantes criam-se ou sobredimensionam-se factos que cumprem o papel de inimigos úteis. Rapidamente se instala um ambiente de cruzada. Como se todos os problemas do país estivessem concentrados nos offshores. Mas os offshores são apenas um capítulo – o mais recente – numa longa lista de inimigos úteis que, uma vez derrotados, permitiriam ao país seguir em frente.
Quem não se recorda do problema das multinacionais? As multinacionais eram “a face mais negra do capitalismo”. Apedrejar as instalações das multinacionais – para mais muitas delas com ligações à CIA – quando não fazer-lhes explodir uns escritórios era um acto legítimo de resistência. Quase uma questão estética. Ninguém de bom senso defendia as multinacionais. Estas apenas vinham para o nosso país – e para os demais – explorar o povo, as riquezas nacionais e mandar nos governos.
Depois, quando já ninguém as contestava, as multinacionais, verdadeiros espíritos de contradição, começaram a ir-se embora. Aí nasceu a indignação com a deslocalização. Então as multinacionais iam-se embora? Não podia ser. Tanto mais que, oh cúmulo do horror!, as empresas nacionais iam-lhes no encalço.
A deslocalização das empresa protagonizava agora “a face mais negra do capitalismo”. A mesma face que até há pouco era representada pelas mesmas empresas quando se tinham resolvido localizar naqueles países de que agora deslocalizavam. Mais uma vez houve um consenso: a deslocalização era um crime e os países deviam criar mecanismos para combater a deslocalização, explicavam os mesmos que anos antes demonstravam as vantagens de nos vermos livres das multinacionais e de se estancar a sua vinda. Aliás, se houvesse uma verdadeira coordenação europeia – afirmavam – as empresas não deslocalizariam porque seriam penalizadas por isso. Tal como no passado deviam ter sido impedidas de se instalar aqui. Complicado? Então preparem-se para essa saga nacional que foi a luta contra os intermediários, os grandes grupos económicos, a ausência de grandes grupos económicos e as empresas de vão de escada.
Comecemos pelos intermediários. Nos anos 70, acabar com os intermediários era um desígnio nacional, um verdadeiro consenso, uma necessidade absoluta. Os jornais enchiam-se com artigos que comparavam os preços pagos aos produtores versus os preços por que eram vendidos os produtos e, indignadas, as forças vivas do país concluíam que os lucros iam para os intermediários, logo havia que eliminar os intermediários. Houvesse a coragem de acabar com os intermediários e o povo passaria a viver muito melhor.
Para a oposição a Marcello Caetano o intermediário era mais um exemplo da perversão do regime. Para o regime, o intermediário era um símbolo de cupidez pouco compatível com o Estado Social que Marcello Caetano lançara. E assim, em Abril de 1973, em pleno choque petrolífero, a inflação em Portugal nascia, segundo as almas bem pensantes e de bom coração, não de qualquer crise nos combustíveis mas sim da maldade dessa figura que se acoitava algures entre o bom produtor e o comerciante.
Para contrariar a inflação dos bens alimentares, a Junta Nacional das Frutas não só tabelou os preços dos legumes e das frutas como criou uma rede – os postos da Junta – onde, livres de intermediários, se passaram a vender legumes e frutas. Infelizmente não houve maneira de convencer as mulheres portuguesas (quem na época fazia as compras) a trocar as mercearias, os mercados e os novos e apelativos supermercados por aquelas barraquinhas de folha onde, na falta de compradoras, os legumes murchavam e as frutas definhavam.
Vieram as chuvas e os postos da Junta foram-se enchendo de ferrugem. Caiu o regime que os viu nascer, foi extinta a Junta Nacional das Frutas, acabou o PREC e os postos lá se mantinham de pé. Sem frutas nem legumes mas com muita ferrugem e muitos ratos. Vários anos depois ainda andavam os executivos municipais a decidir o que fazer com os velhos postos. Como na época não havia na época o conceito de loja histórica os postos da Junta foram sendo retirados. Tal como desapareceram também os postos da UCAL que, para quem não saiba o que que era, se tratava de umas lojas altamente históricas destinadas a vender, livres de intermediários, leite e manteiga. Sendo que manteiga às vezes havia e o leite invariavelmente faltava. Mas o desaparecimento dos postos da Junta Nacional das Frutas e da UCAL foi um perda irreparável. Nem sei como não os ressuscitam!
Mas descansem as almas inquietas com a exploração do povo: o país não tinha desistido de combater os intermediários. Apenas se tinha dotado de mecanismos mais eficazes e estruturas mais organizadas para esse combate. Ou seja, o país apostava agora nas cooperativas de consumo. A dado momento tornou-se mesmo um frenesi: havia cooperativas para todos os gostos e até socialmente diferenciadas: ter o cartão da cooperativa dos bancários era quase um emblema de pertença à nova classe média. Já frequentar as cantinas da PSP funcionava como uma introdução à Roménia de Ceausescu!
Como se sabe as cooperativas feneceram porque não aguentaram a concorrência com os grandes supermercados e hipermercados, nomeadamente com os do senhor Belmiro de Azevedo, onde qualquer pessoa desejosa de parecer bem e com vários cartões de várias cooperativas jurava que nunca entraria. Com tanta mudança os intermediários foram esquecidos como ódio de estimação. De certo modo o ódio, tal como o casamento, para ser eficaz deve ser monogâmico. E assim os intermediários foram substituídos pelas empresas de vão de escada, como flagelo nacional a que sobre todos os outros havia que pôr fim.
Portugal não se desenvolvia porque estava cheio de empresas de vão de escada. Para mais as empresas de vão de escada eram invariavelmente propriedade dos empresários mais ignorantes e estúpidos do mundo. Para a determinação do grau da estupidez dos empresários portugueses concorria, segundo os abalizados especialistas em “vaõdescadologia” que povoavam os jornais e a televisão, o facto de os empresários por serem estúpidos não arriscarem e não investirem em tecnologia e mão-de-obra qualificada.
Estavam as coisas neste ponto do diagnóstico sobre os malefícios do vão de escada, quando se detecta outro fantasma pairando sobre o país. Era ele protagonizado pelas empresas que fazendo grandes investimentos em tecnologia recorrem a pouca mão-de-obra. Logo os mesmos sábios pedem legislação que penalize estas últimas empresas que não contribuem como deviam para a Segurança Social porque, recorrendo a muita tecnologia, usam pouca mão-de-obra.
Note-se que este combate às empresas de vão de escada que recorrem a muita mão-de-obra (mal paga) a que se seguiu o combate às empresas que incorporam muita tecnologia e pouca mão-de-obra (melhor paga), fora precedido pela batalha fundadora contra os grandes grupos económicos.
Em 1974 o nosso problema eram os grandes grupos económicos. Havia que nacionalizar os grupos económicos, donos de Portugal. Os seus fabulosos lucros pertenciam ao povo e ao povo deviam ser devolvidos. Os grandes grupos económicos (e também os grupos médios, os pequenos e até lavandarias, barbearias e sapatarias) foram nacionalizados. Infelizmente para o povo os lucros fabulosos ou mesmos só os lucros pequenos ou até residuais é que nem vê-los pois logo se transformaram em gigantescos prejuízos.
Em resumo, Portugal, que primeiro não se desenvolvia por causa dos grandes grupos económicos e das multinacionais passou a não se desenvolver por causa da deslocalização das multinacionais e de não termos grandes grupos económicos e apenas empresas de vão de escada. Depois passámos a não nos desenvolver porque as empresas que já não eram grandes grupos económicos nem de vão de escada passaram a investir mais em tecnologia e menos em mão-de-obra barata, pelo caminho os intermediários devem ter ido à vida deles felizes por mais ninguém os culpar de coisa alguma.
Convenhamos que todos estes combates se inseriam num combate maior: o que visava extinguir a exploração do homem pelo homem. Acabar com os patrões ou seja com os exploradores era o meio mais que certo para acabar com a exploração do homem pelo homem. Boa parte da massa cinzenta deste rectângulo ocupou-se durante anos de questões relevantíssimas como: serão todos os patrões exploradores? Serão exploradores os patrões que apenas têm um ou dois empregados e até trabalham ao seu lado? Não serão esses patrões também umas vítimas do sistema? Qual sistema? O da exploração…
Apesar do consenso a exploração do homem pelo homem não só não terminou como foi esquecida. Hoje ninguém se preocupa com a exploração porque agora o que conta é que o explorador pague impostos. A fuga ao fisco (ou a simples expressão do desejo de pagar menos impostos) tornou-se a fonte de todos os problemas, não apenas do país, não apenas da Europa, não apenas do hemisférios norte mas sim de todo o mundo. Até o facto de haver pessoas que procuram legalmente pagar menos impostos se tornou um crime. E assim, neste Abril de 2016, partimos para mais um combate. A saber o da luta contra os offshores. Outros se seguirão. Tanto mais que cada vez teremos de ir buscar o dinheiro mais longe: ironias de Abril, há quarenta e dois anos, em 1974, nem empresários nem políticos tinham dinheiro fora de Portugal. Hoje os portugueses confiam no regime que têm mas as suas elites não acreditam no país q.b. para lhe entregar o seu dinheiro. E a avaliar pelos dados revelados pelo Ministério das Finanças neste final de Abril é bem provável que mais dinheiro esteja já a sair: de 2010 a 2014, mais de 10.200 milhões de euros saíram de Portugal para serem aplicados em sociedades offshore. Mas esse dinheiro não saiu regularmente: o maior volume de transferências aconteceu em 2011, com mais de 4.600 milhões de euros. E o mais baixo volume de transferência aconteceu em 2014, ano em que apenas cerca de 373 milhões de euros foram transferidos para offshores. Percebido?
Moral da História: o dinheiro a sair dos países é o primeiro sinal da crise que está a vir. Não admira portanto que se tenha falado de offshores na estrambólica conferência de imprensa dada por Mário Centeno após esse dia surreal em que o parlamento aprovou o Programa de Estabilidade. E ainda menos admira que precisemos de um inimigo para nos distrair da realidade. Mais do que fugir dos impostos em Portugal o dinheiro foge das crises. E Mário Centeno sabe-o.

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