Liberdade de ensino ou Estado-educador?

João Carlos Espada
Observador 9/5/2016

Os ataques à liberdade de ensino sublinham o afastamento de sectores da actual maioria face aos consensos entre centro-esquerda e centro-direita que vêm sustentando a nossa vida democrática civilizada

Já quase tudo terá sido dito sobre o ataque do actual Governo e da coligação que o suporta contra as escolas com contrato de associação e contra a liberdade de escolha das escolas pelas famílias. Está aliás de parabéns o Observador pelo excelente debate que tem proporcionado sobre esta matéria.
Gostaria apenas de acrescentar um alerta sobre o significado político deste mais recente ataque à liberdade de escolha das escolas pelas famílias. Ele evidencia uma vontade de afastamento de sectores da actual coligação governativa relativamente aos consensos entre centro-esquerda e centro-direita que — depois do PREC e até agora — vêm sustentando a nossa vida democrática civilizada.
Em dois artigos vigorosos (“Caramba! Desculpem a grosseria, é caso para isso” e “Há princípios irrenunciáveis”), Mário Pinto recordou no Observador as várias referências constitucionais e legislativas que gradualmente construíram esse consenso demo-liberal contra uma visão jacobina e autoritária do “Estado-educador”. Gostaria agora de recordar como esse consenso foi reafirmado e sublinhado por vozes à esquerda e à direita durante os chamados “Encontros dos Jerónimos”, promovidos no Mosteiro dos Jerónimos, entre Dezembro de 2006 e Julho de 2007, pela revista Nova Cidadania.
O título geral dos Encontros dos Jerónimos foi sintomático: “Estado Garantia: O Estado Social do Século XXI?”. No documento que serviu de base aos Encontros, Fernando Adão da Fonseca definia assim a ideia de Estado Garantia:
“É um Estado a quem se exige que garanta a todos os cidadãos a liberdade de escolha entre serviços que satisfaçam os seus direitos fundamentais, independentemente da titularidade estatal ou não estatal de quem os presta. O verdadeiro Estado Social é um Estado Garantia, na medida em que lhe compete garantir um mínimo de liberdade de escolha a todos os cidadãos. Quando o exercício de um direito estiver em risco por falta de meios, o Estado Garantia tem a obrigação de garantir às pessoas os recursos económicos que possibilitem o exercício desse direito.” (Nova Cidadania 31, Janeiro/Março de 2007, p. 28).
Na sessão de abertura dos Encontros dos Jerónimos, a 16 de Dezembro de 2007, participaram, além dos organizadores, D. Manuel Clemente, então Bispo Auxiliar de Lisboa, José Gomes Canotilho e José Carlos Vieira de Andrade, ambos da Universidade de Coimbra, João Cardoso Rosas (Universidade do Minho) e Diogo de Lucena (da Universidade Nova de Lisboa).
João Cardoso Rosas, uma voz certamente não situada à direita, sublinhou que a ideia de Estado Garantia permitia uma interpretação ao centro-direita e uma outra ao centro-esquerda. E concluiu:
“O Estado Garantia não tem pois uma cor política única. No entanto, também não se pode dizer que tenha potencialidades para revestir qualquer cor política. O Estado Garantia não é colectivista nem é libertarista. Ele afasta decisivamente as perspectivas que atribuem ao Estado um papel dirigista face à sociedade, assim como aquelas que consideram que o Estado mais não deve fazer do que proteger a propriedade privada” (Nova Cidadania 31, Janeiro/Março 2007, p. 35).
Esta interpretação de João Rosas estava e está, aliás, em consonância com a evolução recente das democracias europeias. No caso da Suécia, em primeiro lugar, e depois do Reino Unido, reformas foram introduzidas, desde 1995, no sentido de substituir o quase monopólio das escolas estatais no sistema nacional de ensino obrigatório. Como explicava o Financial Times a 9 de Janeiro de 2007, “na Suécia o Estado passou a pagar às famílias, cujos filhos queiram frequentar escolas independentes, desde que estas cumpram certos padrões básicos, sejam abertas a todos, e não cobrem propinas além das financiadas pelo Estado.”
Na Suécia, estas reformas foram iniciadas na década de 1990 por um governo de centro-direita. Desde então, foram mantidas e até reforçadas por governos de centro-esquerda. No Reino Unido, reformas no mesmo sentido foram iniciadas pelos governos trabalhistas de Tony Blair. Têm sido mantidas e até reforçadas pelo último governo conservador-liberal e pelo actual governo conservador.
No nosso caso, não se pode dizer que tenham sido implementadas reformas efectivas no sentido do Estado Garantia — ainda que estas, como sublinhou Mário Pinto, fossem perfeitamente compatíveis com a Constituição e a legislação em vigor desde 1979.
O sistema das escolas particulares com contrato de associação é apenas um tímido passo no sentido de aceitar a liberdade de escolha das famílias. Mas até esse tímido passo está agora sob fogo cerrado de sectores peculiares da esquerda, colectivistas e arcaicos, que pretendem regressar ao paradigma autoritário do Estado-educador.

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