Contratos de associação, sim ou não? Nim

JOÃO MIGUEL TAVARES Público 12/05/2016

Encurralar pessoas, cabeças e liberdades tem sido uma das melhores especialidades da nossa democracia.

A impressionante dimensão que o caso das escolas com contratos de associação está a tomar, quer na opinião pública quer em múltiplas intervenções políticas, justifica-se por uma só razão: este é uma discussão que interessa tanto à esquerda como à direita alimentar. A esquerda, por uma vez, pode afirmar as suas convicções ideológicas ao mesmo tempo que argumenta com a necessidade de diminuir a despesa pública (uma extraordinária raridade). A direita, por seu lado, consegue pôr-se ao lado de vários grupos de pessoas que se manifestam ruidosamente contra o governo sem serem sindicalistas (uma raridade extraordinária, pois até agora só tinha havido devoluções de rendimentos, coisa pouco dada a exibições públicas de desagrado). Há muito tempo que não víamos Pedro Passos Coelho tão mexido, e não é certamente por acaso.
Esta troca de papéis tem, contudo, consequências bizarras. A direita, desde logo, não tem sublinhado devidamente que a necessidade de conter custos, proclamada pelo Ministério da Educação, está correctíssima. Se na mesma zona do país, devido à evolução demográfica, há escolas públicas com vagas de alunos e escolas privadas com contratos de associação, então a duplicação de custos é naturalmente absurda. Não se vão manter rendas a duplicar por simples inércia. Uma direita que luta pela racionalização das despesas do Estado não pode ignorar a justeza básica desta argumentação. Se o fizer, corre o risco, como é óbvio, de ser acusada de liberal só para aquilo que lhe dá jeito, ou, nas palavras de Daniel Oliveira, de patrocinar um “liberalismo de subsídio”.
Onde a direita volta a ter razão é no passo seguinte, que não deveria custar muito a entender. Havendo duas escolas que estão a prestar o mesmo serviço, e tendo necessariamente que fechar uma para racionalizar os custos, qual delas deveria fechar? Aí, a resposta parece-me óbvia: deveria fechar a pior escola e ficar aberta a melhor. Se a pior fosse a pública, fechava a pública. Se a pior fosse a que tem um contrato de associação, deixava-se de pagar o contrato de associação. Quanto ao argumento da laicidade do Estado no caso das escolas geridas pela temível Igreja, só posso apontar para o calendário: 2016, não 1916. Para achar que a laicidade do Estado é actualmente um problema é necessário estar imbuído de um espírito mata-frades que mereceria estar preservado em clorofórmio no Museu de História Natural.
Mas atenção: não vale a pena a esquerda irritar-se já comigo, porque eu próprio admito que o meu parágrafo anterior tem dois problemas práticos, que muito dificultam a sua aplicação. O primeiro é que o conceito de “pior” e de “melhor” é inaplicável à escola pública enquanto o regoverno nos estiver a pastorear. O verbo “avaliar” é a kryptonite do sindicalismo português e Mário Nogueira voltou a ser o Super-Homem da 5 de Outubro. O segundo problema é mais grave: chama-se Constituição. É que se o artigo 43 proclama “a liberdade de aprender e ensinar”, o artigo 75 dispõe claramente que “o Estado criará uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população”. Ou seja, os direitos, liberdades e garantias dos indivíduos são proclamados no artigo 43 e logo encurralados pelos deveres culturais do Estado no artigo 75. Faz sentido? Não faz. Mas, a bem dizer, encurralar pessoas, cabeças e liberdades tem sido uma das melhores especialidades da nossa democracia.

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