Interesses totalitários

João César das Neves
DN 20160407

Há pequenos sinais que têm o condão de cristalizar uma realidade complexa. A Fenprof conseguiu-o com o recente cartaz: "Os nossos impostos são para investir na escola pública, não para gastar com privados". A frase desta campanha nacional fornece pistas importantes para explicar o atraso português, a crise financeira e a situação política, além de ser forte candidata a descaramento do ano.
Comecemos pelo último ponto. Os autores da afirmação consideram-se cidadãos de primeira, com acesso aos "nossos impostos", desprezando outros que alegadamente devem ser excluídos. A discriminação justifica-se por serem "privados", qualificativo que chega para os banir. Curiosamente, esses privados pagam muito mais dos tais impostos, que assim pertencem-lhes acima dos acusadores. O pecado que cometem é concorrer contra o enorme potentado da escola pública que, além de já levar uma fatia colossal do tesouro nacional, pretende ser ainda mais esmagador.
A autoria do cartaz levanta também problemas internos. A Fenprof afirma defender os professores, mas afinal só se interessa por alguns deles, os da escola pública, atacando os outros por serem privados. Este elemento levanta problemas graves na lógica do movimento sindical, mas, pelo menos, deveria implicar a alteração do nome da organização, que se arroga uma representatividade que obviamente não tem.
A isto junta-se o cinismo da afirmação. Quem a escreveu sabe perfeitamente que não são os privados que recebem os dinheiros públicos, mas as famílias, através de propinas mais baixas. As despesas que critica dirigem-se apenas a subsidiar o ensino de alunos pobres, sem acesso ao serviço público gratuito. É precisamente nesse caso, mais do que na criação de escolas próprias, que o Estado cumpre o seu dever de promover o acesso e a liberdade aos pais na educação dos seus filhos. Mas até essa pequena fatia das despesas educativas chega para motivar a fúria do sindicato.
Parece assim evidente que, apesar das declarações piedosas, o propósito da Fenprof nada tem que ver com a qualidade do ensino e a formação dos jovens. É antes exclusiva e descaradamente corporativo, centrado apenas nos interesses dos funcionários do aparelho estatal. Estes, apesar de já terem emprego e regalias garantidos pelo dinheiro dos nossos impostos, ainda reagem quando alguns fundos públicos não lhes são dirigidos. Sentem-se evidentemente donos do Orçamento do Estado, que pretendem canalizado exclusivamente para si. Os outros cidadãos são inimigos a abater.
Este problema ultrapassa em muito a mera questão escolar, pois a frase representa a atitude corporativa, clientelar e burocrática que há séculos impõe o atraso nacional. Foi também esta mentalidade protecionista e interesseira que gerou a recente crise orçamental e financeira. Os professores são apenas um dos muitos grupos que se instalaram nas instituições nacionais, pondo o seu interesse particular no lugar do bem público que deveriam promover. Através de muito meios, mas sobretudo pelo Orçamento, esta distorção foi gerando a dívida que agora nos paralisa, bem como os incentivos, regulamentos e institutos que bloqueiam o desenvolvimento.
A ocasião do cartaz surpreende pois, aparentemente, surge sem razões próximas. Os contratos de associação, que dão alguns fundos do Estado a escolas privadas, não são novos e já tiveram mais relevância. Mas não é por acaso que a campanha surge nesta altura. A sua razão tem que ver não com a situação concreta do sector, mas com a conjuntura política, considerada favorável a este tipo de golpes. A maioria de esquerda que apoia o governo deve estar a preparar-se para impor o monopólio estatal no sector da educação, e precisa de propaganda para se justificar. Mas, além de sinalizar a estratégia que se prepara, ela revela uma dinâmica muito mais profunda e preocupante.
A esquerda nasceu progressista e ética, preocupada com justiça social e a promoção dos desfavorecidos, mas a evolução foi degradando essas ideologias. Insensivelmente foram deixando de defender os trabalhadores, proletários e classes pobres, para ficarem crescentemente dominadas por interesses dos aparelhos públicos. Hoje, quando a maior parte das organizações já esqueceu a revolução, as luta de classes e a ditadura do proletariado, ser de esquerda significa espremer ao máximo a economia nacional para satisfazer a insaciável ânsia dos aparelhos burocráticos. Assim, o Orçamento do Estado para 2016 sacrifica o crescimento para alimentar clientelas. Que quanto mais têm, mais querem.

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