Imaginem que não era ele

David Dinis
DN 20160309

Estávamos em 2013, a meio da execução do memorando da troika - maldito ou bendito, escolha à sua vontade. A 1 de janeiro, Cavaco Silva apareceu na televisão para dizer aos portugueses isto: o país está numa espiral recessiva e tem urgentemente de corrigir caminho. Como sempre no mundo político, a oposição aproveitou o pretexto e culpou o governo. Já Passos, contestou a conclusão do Presidente - e ficou encostado a um canto.
2013 foi o ano decisivo. Passaram poucos meses e a troika quase chumbava o país, numa famosa sétima avaliação. Gaspar saiu. O governo quase caiu. Foi também o ano em que, pela primeira vez, um Presidente da República tentou o impensável: juntar três partidos num acordo de governação, que salvaguardasse o essencial, abrindo espaço para eleições antecipadas - que deixariam a oposição a meio caminho do governo. O Presidente tentou, mas não forçou o acordo.
Cavaco Silva sai hoje da Presidência da República. Assim, a quente, dificilmente lhe faremos a justiça de o avaliar bem. Mas podemos tentar imaginar o que teria sido aquele ano se não fosse ele, mas Manuel Alegre ou Mário Soares (os seus últimos adversários) a comandar o barco a partir do Palácio de Belém. Só para ficarmos com uma imagem.
Naquele ano de 2013, se não estivesse Cavaco Silva em Belém, quantas presidências abertas teríamos visto? Quantas reuniões de emergência em Belém? Quantos diplomas negociados com a troika teriam sido travados, enviados para o Ratton, devolvidos à Assembleia ou ao governo? Quantas mais tensões teríamos tido com a Comissão Europeia ou com o BCE? Quanto mais défice e dívida teríamos? O governo não teria caído ao primeiro sinal de rutura entre Passos e Portas? Teríamos fechado o resgate? A espiral recessiva, como acabaria?
Há muitas, muitas críticas que podemos - e devemos - fazer aos mandatos de Cavaco enquanto Presidente. Do modo como se colou a Sócrates, no início, ao modo como o combateu a partir de Belém (das escutas aos Açores, um dia haveremos de ter mais dados sobre essas histórias). De como acompanhou à distância a troika, de como hesitou em vários passos (os cortes, o TC, a espiral recessiva). De como terminou o seu mandato, mais isolado do que nunca, de costas voltadas para o governo que foi forçado a nomear. Podemos também contestar a forma como se rendeu a um último objetivo, o de ajudar o governo de então a fechar um capítulo, o da troika.
Podemos e devemos fazer isso: criticar Cavaco porque foi Presidente de menos, criticá-lo também por ter tentado demais (em 2013 ou apenas há uns meses, antes de Costa subir ao poder). O que não farei é cometer a injustiça de dizer que Cavaco Silva não cumpriu o papel que escolheu para si: de fazer o que entendeu prioritário, de acordo com a sua consciência. Hoje, viraremos a página, com um novo Presidente. Um dia falaremos sobre o que seria hoje Portugal se no lugar dele os portugueses tivessem eleito outro Presidente.

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