O superior interesse dos adultos e a discriminação das crianças

RITA LOBO XAVIER Público 17/07/2013

Na exposição de motivos do projeto recentemente apresentado na Assembleia da República sob a falsa designação de “coadoção”, ficciona-se uma situação para ilustrar a crueldade supostamente originada pelo vazio legal que se pretende preencher com essa iniciativa. Imagina-se uma criança que até aos dez anos de idade foi educada pelo seu pai e pelo seu companheiro a ser arrancada dos braços deste último pela família do pai subitamente falecido.
A solução legal para este dramático caso académico é simples: basta que o pai, no seu testamento, nomeie o companheiro como tutor; mesmo não o tendo feito, o companheiro sobrevivo poderá ser nomeado tutor por se tratar de pessoa que de facto cuidou do filho do falecido; e, finalmente, poderá vir a adotar a criança. Passo a descrever uma situação que não é inventada. Uma criança nasceu sem que os pais estivessem casados, ficou a viver com a mãe e, a partir dos cinco anos de idade, também com a companheira desta. Tendo o rapaz dez anos de idade, esta última pretende adotá-lo, requerendo que não seja tida em conta a oposição do pai da criança, com quem mantém contatos regulares.
Tal é, resumidamente, a situação real subjacente à famigerada decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que condenou a Áustria no pagamento de uma indemnização. Aliás, esta decisão tem vindo a ser abusivamente invocada em Portugal como suporte à tese da necessidade de proteção das crianças por via da extensão da titularidade das responsabilidades parentais ao cônjuge ou companheiro do mesmo sexo de um seus progenitores. Com efeito, não existem em Portugal normas semelhantes às que foram consideradas por aquele tribunal como envolvendo discriminação em função da orientação sexual.
A verdade é que aquela decisão não põe em causa nem substitui a dos tribunais austríacos. Estes não poderiam acolher a pretensão daquelas duas mulheres sem criar uma situação mais atroz do que todas as que possam ser congeminadas para tentar justificar a adoção do filho do cônjuge ou do companheiro do mesmo sexo. E, se o fizessem, dariam origem a uma discriminação entre aquela criança, a quem seria retirado o direito a constituir relações jurídicas de paternidade e de maternidade, e as crianças a quem esse direito é assegurado.
Privar a criança da relação de paternidade… eis o que afinal era solicitado, por opção da mãe e no interesse dos adultos, a pretexto da necessidade de proteção da criança. Mas a proteção da criança não o exige nem tão-pouco o aconselha. Não é manifestamente do interesse de uma criança a extinção das relações com o seu pai e restante família do lado paterno e a sua substituição pela companheira atual da mãe. Corresponderá ao desejo de duas mulheres adultas de fingirem que têm em comum o filho que a natureza lhes nega. Este desejo não pode ser satisfeito à custa dos direitos da criança. É que o paradigma é sempre o da filiação natural, mesmo para as pessoas do mesmo sexo que pretendem adotar.
A autora é docente da Escola de Direito da Universidade Católica Portuguesa, no Porto e escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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