A regressividade do OE 2016 (I) questões metodológicas

Pedro Romano, Desvio colossal, 2016.02.10

post anterior gerou uma série de reacções, e-mails, comentários e críticas. Esta e as próximas entradas abordam algumas questões específicas e clarificam outras nuances de forma um pouco mais técnica.  
  • A base de dados dos Quadros de Pessoal não inclui o sector público. Os resultados não estão enviesados?
A base de dados dos Quadros de Pessoal não inclui, de facto, o sector público. Sabemos que os funcionários públicos ganham em média mais do que os trabalhadores do sector privado (IIIIII). Incluí-los na tabela elevaria assim os salários de cada decil, fazendo com que os benefícios que derivam da redução da sobretaxa e da restituição de salários na função passassem a afluir a mais decis de rendimento do que apenas o primeiro e o segundo. Na prática, a regressividade retratada neste gráfico diminuiria.
Por que é que não incluí os funcionários públicos nas contas? Por um questão prática: não há dados. Seria teoricamente possível construir uma base de dados mais alargada usando números da DGAEP, mas na prática teria de assumir uma data de hipóteses violentas, acabando com um resultado final extremamente sensível ao tipo de distribuições assumidas.
Dito isto, não me parece que a inclusão da função pública altere significativamente os resultados, porque temos outras fontes que sugerem uma distribuição de rendimentos semelhante, e que colocam um funcionário público com 1.500€ (o escalão a partir do qual há cortes salariais) muito bem colocado na faixa salarial. Vejam, por exemplo, as declarações de IRS das famílias (dados da Autoridade Tributária, via Pordata).
Imagem A
Imagine-se um casal de funcionários públicos com 1.500€ brutos cada um. Segundo os dados da AT, e assumindo 12 ou 14 salários, esse casal já estará incluído nos 10% de declarações de rendimento mais altas (1.500 x 2 x 12 = 36.000€). Mas mesmo uma declaração individual de 1.500€ já calha na antepenúltima categoria (1.500 x 1 x 12), o que é o suficiente para aparecer nos 33% de declarações mais altas.
Portanto a inclusão dos funcionários públicos pode levar a uma revisão dos decis a partir dos quais a sobretaxa e a devolução de salários têm estes efeitos, mas dificilmente irá alterar de forma radical o resultado final.
  • Os salários não dizem tudo. Há outros rendimentos que afectam a riqueza de um cidadão, como rendimentos de capital. A distribuição de salários por decis não leva isto em conta.
É verdade, não leva. E também não leva em conta muitas outras coisas: as transferências sociais (subsídio de desemprego, pensões), a subsidiação diferenciada de serviços públicos (isenção de taxas moderadoras, por exemplo), o número de filhos do agregado familiar, etc. É por isso que as estatísticas de distribuição tentam capturar todos estes fenómenos, construindo categorias de rendimento ‘sintéticas’.
Mas qual é exactamente a relevância desta subtileza? As transferências sociais – se forem bem afinadas, claro – podem reduzir a severidade da pobreza de quem está no fundo da tabela; mas não fazem essas pessoas passar à frente das outras por causa disso. E os rendimentos de capitais provavelmente têm o efeito oposto, reforçando o rendimento de quem já está à frente da distribuição salarial (quantos seguros, depósitos a prazo e fundos de acções acham que tem quem ganha 500€?). Ou seja: estes elementos podem alterar o rendimento de cada segmento da população, mas dificilmente farão com que os elementos de cada decil mudam radicalmente de decil.
Vejam isto de outra forma. Imaginem que o Governo quer tornar a divisão de rendimentos mais “justa”, e para isso propõe um aumento de progressividade do código fiscal, subindo a taxa marginal de imposto em 1 ponto percentual à medida que avança nos escalões de rendimento. Quantas pessoas acham que ouviríamos argumentar que isto não faz sentido nenhum porque a progressividade da taxa à cega à inclusão de outras variáveis que influenciam o grau de pobreza de cada agregado?
  • As contas não incluem a troca do quociente familiar pela dedução fixa por filho.
Correcto. Mas por uma razão muito simples: essa medida não aparece na lista das medidas orçamentais e fiscais da tabela II.3.6. O que aparece é algo diferente: o impacto negativo, nas contas de 2016, da introdução do quociente familiar em 2015.
Devia ter incluído este elemento nas contas? Idealmente, sim. Mas não podia respigar todas as dezenas de medidas que estão dispersas pelo documento, pelo que me concentrei apenas nas que estão sistematizadas no quadro-resumo. Já agora, foi pela mesma razão que não incluí na contabilidade a poupança com a redução do número de funcionários públicos e a reintrodução das 35 horas.
Dito isto, não quero refugiar-me em formalismo nem ganhar o argumento na secretaria. E o (pouco) que eu conheço da mecânica das duas medidas (quociente vs. deduções) sugere que a alteração aumenta de facto a progressividade do sistema fiscal. Quanto? Em que medida? Sobre quem incide? O efeito é suficiente para compensar a regressividade das outras medidas? Não sei.
  • A posse de carro é altamente assimétrica, o que contraria a ideia de que os gastos com a utilização de veículo são mais ou menos estáveis ao longo das classes de rendimento.
O leitor João Pimentel Ferreira fez esta objecção, e deixou nos comentários um alguns dados acerca da distribuição da posse de automóveis. A questão aqui é que para apurar o impacto do imposto sobre os produtos petrolíferos o que interessa não é a distribuição da posse de carro, mas a distribuição dos seus custos de manutenção. E foi esse o indicador que eu apresentei. Claro que só quem tem carro é que pode ter destes custos, mas à partida esse factor já é levado em conta nestes dados


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