Sobre como fazer as contas

Cristina Sá Carvalho
RR 05 Jan, 2016

O governo de António Costa cedeu à preocupação do BE com a felicidade das criancinhas (e que felicidade é essa, podemos perguntar, que se destrambelha gravemente com dois dias de exames nacionais?) e retirou prontamente do calendário os exames do 4.º ano. Mostrou, pois, como a esquerda moderna é sensível à cultura clássica: mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma.
As retóricas políticas deste início de século alteraram substancialmente os conceitos de cidadania escolar que tinham animado os sistemas educativos europeus no pós-guerra, nomeadamente a ideia de meritocracia – com os seus méritos e deméritos – sofrendo as ideias de mérito e de igualdade uma importante alteração de perceção. Os valores da sociedade individualista impuseram-se, reivindicando o lugar cimeiro para a responsabilidade, a implicação e a competição, facultando à escola o papel de mobilização da sociedade para um fundo de concorrência interindividual sem precedentes. Este fenómeno tem como epicentro um conflito complexo, uma vez que o mérito escolar já não garante a mobilidade social com que a escola se foi impondo na sociedade, pois a massificação dos diplomas lhes retirou valor. Por outro lado, nas sociedades democráticas liberais, a preocupação com a eficácia dos sistemas de ensino tem ganho um peso crescente. Esta eficácia é, sobretudo, uma eficácia económica, não só para o tratamento dos recursos dos Estados mas no objetivo de garantir, através da escolarização, uma adaptação perfeita do sujeito escolarizado ao sistema económico, à produção. Mesmo quando se aceita reclamar que o aluno deve estar no centro do sistema, é sempre na esperança de reduzir os custos dos problemas, de facilitar, com o conformismo, a integração e o rendimento escolar, e de controlar o out put. Esta retórica que, na União Europeia, não mostra discursos divergentes entre a esquerda e a direita, fazendo antever que não haverá alterações com as mudanças de governo, assenta num modelo executivo de accountability. Que os governos prestem contas ao cidadão contribuinte sobre a forma como gastam o seu/dele (convém sublinhar) dinheiro, é um bem necessário, mas a accountability/ aferição que os sistemas educativos adotaram tem, sobretudo, a ambição de transformar a educação num sistema de mercado, concorrencial e competitivo. Significa que os bons se tornarão melhores e os mais fracos correm o risco de ser excluídos do sistema. Num tal projeto, a avaliação tornou-se o instrumento central da vida na escola. Como já aqui se referiu várias vezes, não se trata de ensinar para aprender (e de avaliar para melhorar a aprendizagem) mas de ensinar para avaliar. Também se avaliam os professores (o que é potencialmente útil se os ajudar a melhorar a sua capacidade educativa), para evitar que se desviem desde amplo projeto de sociedade, e não tardará que se avaliem estritamente os responsáveis pelas escolas, na tentativa, historicamente vã, de controlar a interpretação local das diretivas superiores.
Naturalmente, o governo de António Costa cedeu à preocupação do BE com a felicidade das criancinhas (e que felicidade é essa, podemos perguntar, que se destrambelha gravemente com dois dias de exames nacionais?) e retirou prontamente do calendário os exames do 4.º ano. Mostrou, pois, como a esquerda moderna é sensível à cultura clássica: mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma. Entretanto, quando a palavra "refugiado" é a palavra do ano 2015, não seria demais que a palavra "desafio" fosse a palavra dominante para 2016. Defini-la-ia com as palavras de António Vitorino aos microfones desta casa: "O que me preocupa para 2016 é a saúde das nossas democracias nacionais, mais do que a da democracia europeia. É o crescimento do racismo e da xenofobia, das forças populistas e a ingovernabilidade, a instabilidade em alguns países de criar soluções alternativas. Sem estados fortes, a União Europeia não é forte. Esse é o desafio". É difícil antever a possibilidade de afirmar as democracias sem uma perspetiva de educação que ultrapasse a mercantilização da formação da pessoa. Não nos esqueçamos que a redução da nossa vida comum à lógica do mercado também enfraqueceu fortemente o papel educativo e protetor das famílias e que os infantes estão, largamente, entregues a si mesmos e às maravilhas educativas da internet. Quando se está sentado sobre um barril de pólvora não nos convém brincar com o fogo. Um bom ano!

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