Jerónimo

HENRIQUE RAPOSO
Expresso, 20151107

Caro Jerónimo de Sousa, parte de mim gosta de si, porque você podia ser meu tio ou avô. Literalmente. Quando saiu do Alentejo em direção à Grande Lisboa, a minha família começou por morar em Pirescoxe. O meu avô e tios trabalharam lá em baixo nas Covinas e Fimas, os meus pais iam aos bailes da coletividade onde você ainda hoje vota, eu fiz o quinto ano na escola de Pirescoxe; conhecia bem a vila, sobretudo o castelo abandonado, o ringue, onde sonhava ser o Vítor Paneira, e o descampado onde você joga chinquilho. Portanto, não posso deixar de sentir empatia por si, apesar de odiar aquilo que fez em 1975. Sim, odiar. Quando nasci, em 1979, os meus pais estavam desempregados porque você e demais sindicalistas haviam destruído parte das fábricas da Margem Norte, a Cintura Industrial entre Sacavém e Vila Franca. 
Tomei consciência de mim mesmo já na normalidade cavaquista e, por isso, nunca ouvi as histórias da anarquia do PREC. Mas sabe o que é curioso, meu caro? Neste último mês, ouvi finalmente essas histórias, porque a ventania que você iniciou está a levantar uma poeira ressentida. Por exemplo, descobri que o meu pai foi insultado por membros da própria família quando recusou ocupar a fábrica onde trabalhava em Sacavém e, acima de tudo, quando aceitou testemunhar em tribunal a favor do patrão. É assim o clima de guerra civil: rasga ao meio famílias inteiras. Na época, o argumento do meu velho era muito simples: “E fazemos o quê quando destruirmos a fábrica? Vivemos do ar?” Assumindo que podiam viver do ar, muitos destruíram as fábricas onde trabalhavam. Era preciso assustar a “direita”, diziam. Jantavam ódio. Olhando para aquilo que você tem feito desde 4 de outubro, caro Jerónimo, parece que a esquerda está de novo dominada pelo desejo irracional de assustar a “direita”. O que fazemos depois do susto propedêutico? Não interessa. Álvaro Cunhal e o meu avô, que era comunista, também não se interessavam pelas consequências, mas tinham pelo menos uma vantagem sobre si. 
Eu odiava a ideologia do meu avô, mas respeitava-o porque ele esteve no campo de batalha mais duro do pré-25 de Abril, o Alentejo. Só podia respeitá-lo, só podia respeitar os alentejanos que sofreram a violência do Estado Novo; tinha de me ajoelhar perante a sua dor. Ora, você não tem essa superioridade moral gerada no sofrimento. Como diz Zita Seabra, o meu caro amigo só entrou no partido depois do 25 de Abril. Não, você não tem qualquer autoridade moral sobre a “direita”. Aliás, esta imensa golpada nem sequer cheira a revolução, cheira a reação. PCP, BE e PS não querem mudar nada, querem manter o statu quo. Você, por exemplo, quer proteger a aristocracia sindical do PCP que vive agarrada às câmaras e às empresas de transportes. Sim, tudo isto cheira a medo, batota e reação. É por isso que você, caro Jerónimo, corre o risco de ser o grande coveiro do PCP. Explico porquê: o próximo 25 de Novembro será especial, não será feito na rua ou nos quartéis, será feito na urna e dará à tal “direita” um mandato claro para reformar aquilo que você quer manter. Portanto, meu caro, continue assim. Não falta muito para eu poder dizer que o coveiro do PCP é da minha zona.

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