Há demasiada lenha na fogueira

Rui Ramos
Observador 12/11/2015

Costa vende uma ilusão: a de que a “queda do muro” à esquerda basta para iniciar quatro anos de harmonia e de prosperidade. Nunca com um primeiro-ministro derrotado em eleições e com estes "acordos".
Quando saía da Assembleia da República na terça-feira, António Costa foi interpelado sobre a decisão do PSD e do CDS de não colaborarem com o seu governo. Costa sorriu: era apenas “emoção”, havia de passar. É a esperança de Costa: que tomando posse, dentro de seis meses ninguém se lembre de como começou. Estará certo? O caso de Santana Lopes, em 2004, prova que há vícios de origem que nunca são ultrapassados. Poderia António Costa, caso venha a formar governo, ter outro destino?
Santana Lopes não foi a votos (em 2004), mas António Costa foi a votos – e perdeu. O Partido Socialista elegeu-o em Novembro de 2014 como “candidato a primeiro-ministro”. O país viu-o fazer campanha, ouviu-o prometer o fim da “austeridade” — e não o quis como primeiro-ministro. Podem citar a Constituição. Mas um regime não é só a Constituição. Em Portugal, a autoridade política do primeiro-ministro decorria também do modo como as eleições legislativas eram interpretadas como uma espécie de escolha indirecta do chefe do governo. Como vai Costa compensar essa falta de autoridade política? Alguém se vai esquecer de que ele foi o grande derrotado das eleições de 4 de Outubro?
Santana Lopes tinha uma maioria absoluta de dois partidos coligados, ideologicamente próximos e juntos no governo. Costa nunca poderá ter senão um governo minoritário, apoiado no parlamento por quatro partidos ideologicamente afastados, três dos quais fora do governo e sem outro compromisso que não seja o de não votar moções do PSD e do CDS. Como PCP e BE já explicaram, estarão com um governo de Costa apenas enquanto a política for aumentar despesa. A isto se resumem os lendários “acordos”. Ora, mesmo que o despesismo previsto não agrave o défice, como jura Mário Centeno, não é impossível que uma qualquer ocorrência exija outras políticas. Com quem vai Costa votá-las? Para não falar das reformas que as autoridades europeias esperam ou de directivas europeias a transpor. Costa precisará de um presidente da república muito amigo: motivos de dissolução não vão faltar.
Em 2004, o líder do PS, Ferro Rodrigues, demitiu-se, indignado por o presidente ter dado posse a Santana Lopes. Que teria feito, se o PS tivesse acabado de ganhar as eleições? Costa comete um erro se subestimar a indignação à sua direita, o sentimento de “injustiça” de que falou Telmo Correia. Talvez lhe conviesse, por uns segundos, imaginar-se no lugar do PSD e do CDS. Durante quatro anos, foram forçados a prosseguir a austeridade iniciada e negociada pelo PS, apenas para verem o PS trespassar-lhes todas as responsabilidades. Finalmente, ganharam umas eleições que toda a gente lhes tinha dito que iam perder, apenas para verem Costa improvisar no parlamento um modo de os apear. À primeira medida difícil, Costa não arrisca apenas perder o PCP e o BE no parlamento, mas terá o PSD e o CDS a encher as ruas.
Em 2011, houve uma ilusão: a de que o memorando de entendimento assinado pelo PS, pelo PSD e pelo CDS ia suspender a política em Portugal, e que todos iriam passar três anos a aplicar consensualmente o que havia sido combinado com a troika. Não foi isso que se passou, apesar da pressão dos credores. Neste momento, Costa tenta vender uma ilusão ainda maior: a de que a “queda do muro” à esquerda bastará para iniciar o país em quatro anos de estabilidade, harmonia e prosperidade. Acreditam em milagres? Acreditam que será assim, com um primeiro-ministro politicamente diminuído, um governo dependente de apoios parlamentares pouco comprometidos, uma oposição indignada, e um país a precisar de reformas e de que tudo corra bem no mundo? Há demasiada lenha na fogueira para que o fogo não seja grande.

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