Os três venenos da democracia

Diário de Notícias, 20090622

João César das Neves

Portugal tem uma democracia a funcionar. Esta frase banal constituiu uma novidade espantosa. Aqueles que hoje criticam políticos e instituições esquecem as diferenças abissais face aos desastres democráticos anteriores. Após desilusões seculares, Abril conseguiu pela primeira vez um sistema livre e estável.

As experiências portuguesas com regimes constitucionais, liberais e republicanos foram vergonhosas. Alguma tradição historiográfica pintou com cores negras o absolutismo de D. Miguel e a pseudoditadura de João Franco para exaltar os sucessores. Mas, apesar de prodígios de imaginação e omissão histórica, não restam dúvidas de que as mudanças de 1834 e 1910 criaram das piores calamidades políticas na nossa terra. Os intelectuais portugueses, que tanto criticaram o que viviam, fizeram depois coisas muito piores.

O século anterior a 1926 mostrou que Portugal não sabia viver em democracia. Intriga e corrupção, nepotismo e instabilidade, podridão e desânimo foram constantes. Permanente a fraude eleitoral, selváticos os dislates da imprensa, mentecapto o debate político, proverbial a inépcia ministerial. Vencer o adversário era mais importante que governar o País. O poder era expediente para esfolar o povo a favor dos compadres. No limite, o liberalismo matou um rei e a república um presidente.

Todos os partidos, que discordavam violentamente em tudo, estiveram sempre de acordo que o País ia muito mal. Não admira a atracção latente de potenciais ditadores, de D. Miguel a Costa Cabral e Sidónio, de Saldanha a Pimenta de Castro e Gomes da Costa, até se cair num autoritarismo de 50 anos. O argumento de Salazar sempre foi: "Lembrem-se como era antes de mim." Enquanto se lembraram, funcionou. Democracia cá não dava!

A experiência pós-1974 anulou a dúvida. Comparativamente, é um estrondoso sucesso. Apesar dos defeitos, Sócrates, Leite, Louçã, Jerónimo e Portas nada têm a ver com Passos, Fontes, Hintze, Afonso Costa e Brito Camacho. Persistem problemas evidentes, mas semelhantes aos de Espanha, França e Itália, não aos horrores que nos assombraram o século XIX e primeiro quartel do XX.

A nossa situação política é um grande êxito. Apesar disso, os críticos têm alguma razão: os venenos antigos permanecem. No meio da crise nacional, que se arrasta há dez anos, ressurgem os tiques da Regeneração e da Nova República Velha. Três elementos deste ano eleitoral mostram-no à evidência. Primeiro, as causas do desastre orçamental. Hoje, como há 150 anos, os compadres instalados à mesa do fisco arruínam o País e bloqueiam a vida nacional. Portugal está na Europa, é rico e sofisticado, mas a questão da Fazenda permanece. Entregando os documentos em CD-ROM, Teixeira dos Santos está tão embaraçado na tarefa como Anselmo Braamcamp.

Segundo, a vácua retórica bombástica. Perante a derrocada de 2009, Sócrates está tão perdido como João Crisóstomo no colapso de 1891. Mas isso não importa, porque o sucesso político mede-se, hoje como então, não em resultados práticos, mas em discursos comicieiros, debates parlamentares e imagem jornalística. Em vez de trabalho e soluções, conta a luta demagógica.

Terceiro, a tentação para espúrios temas radicais. No liberalismo, era a expulsão das ordens religiosas, hoje, o aborto e a eutanásia. Na república afonsista era a lei da separação, hoje, o divórcio dos casais e o casamento de homossexuais. A falta de regulamentação da Concordata manifesta como persistem os fumos da Carbonária. 170 anos depois, os nossos setembristas ainda não aprenderam que a satisfação momentânea do ataque às convicções profundas do povo português destrói o futuro e arruína o País.

O mundo mudou, a democracia funciona, a sociedade é moderna. Mas nos pormenores insensíveis a semelhança com épocas antigas chega a dar calafrios. Apesar do desenvolvimento, da Europa e da Internet, os traços do carácter nacional são indisfarçáveis. Por baixo da T-shirt eleitoral sente-se roçar a sobrecasaca do demagogo. Como nos alcoólicos anónimos é sempre de temer a reincidência.

João César das Neves

Comentários

mariahenriques disse…
democracia:-da confiança e da legitimidade quando alguns dizem que a confiança baixou.


a propósito daqueles que dizem que o povo português não confia na democracia portuguesa.


http://mareamos.blogspot.com/2010/03/democracia-da-confianca-e-da.html

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