O que poderá haver de mais justo quando se comemoram 35 anos de Liberdade?

PÚBLICO, 25.04.2009, José Manuel Fernandes

Aqui há uns tempos, num debate nas instalações da Associação 25 de Abril, perante uma plateia hostil às ideias que estava a defender e que me interrompia a todo o momento, Vasco Lourenço levantou a voz e exigiu silêncio. E justificou: "Não foi para isto que fizemos o 25 de Abril." "Isto" era impedir que me expressasse livremente, como acabei por fazer.
No PÚBLICO de hoje, num texto onde foram ouvidos vários militares ligados à revolução do 25 de Abril, o mesmo Vasco Lourenço, apesar de sentir a frustração por muitos dos seus sonhos não se terem cumprido, não deixou de recordar o essencial: "Não se conhece democracia sem partidos e não há sistema menos mau do que a democracia." É certo que nenhuma destas ideias não é original, pois todos recordamos as inúmeras vezes que Mário Soares, por exemplo, teve de defender o papel central dos partidos contra as quimeras do "poder popular", tal como recordamos que foi Churchill que um dia disse que a democracia era o pior dos sistemas de governo, à excepção de todos os outros.
Vasco Lourenço, que hoje deverá descer a Avenida de Liberdade em Lisboa em conjunto com muitos que alimentam a nostalgia de um 25 de Abril de que se julgaram, e ainda julgam, donos, mostrou naquele momento e mostrou de novo nas respostas que deu ao público que, no essencial, permanece fiel aos instintos certos. Ou, se preferirmos, ao instinto que acaba sempre por separar as águas: compreender que o mais importante é "termos liberdade, democracia e capacidade de decidir".
No limite dos limites, termos liberdade e possuirmos mecanismos que nos permitam mudar pacificamente de governo se assim o entendermos.

Se quisermos encontrar a marca de água do que separa o antes do depois do 25 de Abril teremos sempre de procurá-la citando a liberdade. Há crises em democracia tal como as há em ditadura. Há regimes autocráticos que até podem providenciar, no curto prazo, soluções mais eficazes - porque aplicadas sem direito a oposição - do que os regimes democráticos. Isso até aconteceu em certos períodos do século XX na Europa e não deixa de estar a acontecer na China. Mas no longo prazo o que acaba por fazer a diferença é a capacidade de, no "mercado das ideias", se escolherem as melhores para cada ocasião e ter a oportunidade de eleger quem as ponha em prática.
Melhor ou pior, foi isso que os portugueses foram fazendo nos últimos 35 anos, e se muitos se queixam das dificuldades por que passamos é porque são poucos os que começam por pensar o que podem fazer pelos seus e pelo país e imensos os que esperam que seja o país (sinónimo de Estado, de autarquia, de governo) a fazer algo por eles.
Este défice crónico de sentido cívico (aturámos ou não aturámos, com demasiada pacatez, 48 anos de regime autoritário?) está associado à frequência com que ouvimos elogiar os que impõem a sua vontade - os "que fazem", os que "têm obra" - e à falta de protestos sempre que se pretende dar mais um passo para nos tornarmos numa sociedade vigiada e acomodada.
E é aí que, de facto, devemos de novo procurar a marca de água do 25 de Abril, isto é, percebermos o que separa o binómio liberdade-responsabilidade que distingue as sociedades abertas da retórica sobre a legitimidade das maiorias para governarem sem se auto-limitarem.

Os dias que correm são naturalmente mais propícios a quem, em nome da acção e, se necessário, da ordem, e com o apoio dos aflitos, reclame para si, ou para essa máquina sem rosto que é a administração pública, poderes de excepção. Exemplo claro disso tem sido a forma como nenhum partido, nos últimos debates parlamentares, foi capaz de resistir à tentação de, em nome de causas populares, elaborar legislação de forma precipitada e cerceadora dos direitos individuais.
Nestas mesmas páginas Pacheco Pereira discorre sobre o risco de uma recaída autoritária, por enquanto improvável. Mas para a qual, convém acrescentar, não estamos devidamente vacinados. E que até pode surgir como tentadora. Daí que apeteça recordar a frase do poeta grego Eurípides que John Milton escolheu para epígrafe do seu "Discurso ao Parlamento de Inglaterra em defesa da liberdade imprensa" escrito há já 365 anos:
"Há verdadeira liberdade quando homens nascidos livres, em tendo de esclarecer o público, podem falar livremente. Quem consegue e se propõe fazê-lo merece todo o louvor; quem não consegue, ou não quer, pode sempre ficar calado. O que poderia haver de mais justo num Estado?"
Sim, o que poderá haver de mais justo neste país que comemora 35 anos de Liberdade?

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