Lisboa

MARIA JOÃO AVILEZ  OBSERVADOR  05.11.2016

Acenarem com graciosas novas praças ou tapetes de relva não me comove por aí além se o resto ou grande parte dele – o real dia a dia, a rotina quotidiana, o “viver aqui” – permanecer uma luta desigual.

1.“Hoje vamos a Lisboa” dizia a minha mãe e era uma festa. As minhas irmãs e eu vestíamos os bibes de folhos ou então os vestidos “de sair” e esperava-nos um grande dia. A paragem do carro elétrico era mesmo ao pé da da nossa casa e lá íamos nós, numa viagem com sabor conhecido, do Campo Grande aos Restauradores. Lisboa era longe nesse tempo mas ninguém tinha pressa — e porque se haveria de ter e que uso dar à pressa?
A vida era como aquele elétrico, ia devagar e tinha o seu ritmo, as suas estações, as suas pequenas descobertas, e tudo aos nossos olhos parecia ameno e amável mesmo que não fosse mas isso ainda não o sabíamos.
Esta grande aventura da “ida a Lisboa” rematava com um bolo comido em bicos de pés ao balcão de uma pastelaria, após as entradas em retrosarias, no Tátá Rodrigues ou no Ramiro Leão, com direito a subida no seu absolutamente mágico elevador. Era sempre assim e metade deste festejo era a antecipação de voltar a viver o “já conhecido” e seria um desgosto sem nome, nem tamanho, se não fosse “sempre assim”. Como se subitamente descobríssemos que o Capuchinho Vermelho afinal era verde, os anões da Branca de Neve apenas quatro, ou que as irmãs da Gata Borralheira eram boazinhas. Não, tudo seguia uma espécie de ordem pré-estabelecida, com um invisível elo a comandá-la, o mesmo que se desenrolava sempre da mesma maneira nas idas à Baixa com a nossa mãe.
2. Continuo a viver no mesmo lugar mas quando abro o mesmo portão de quando era criança para sair a pé, ou de carro, há uma muralha de lata compacta à minha frente. Manhã cedo e fim do dia, como os semáforos não dão vazão ao movimento, o trânsito parece por vezes bloqueado para todo o sempre, tantos os carros e tamanha a mancha escura que eles formam. E, se chove, a todo este infeliz estado de coisas se junta, meia hora depois, uma altura de água no chão digna de foto. Não posso queixar-me, é o trivial com três entradas para “Lisboa”, no sítio onde moro.
Mas mesmo apesar deste “treino intensivo” de trânsito e lata, sucede que nos últimos meses Lisboa se tornou penosa. Não é só o estar mais suja ou muito mais desleixada nos serviços, é que viver num estaleiro exige um tipo superior de treino. Sim, eu sei: acabadas as obras, os lisboetas talvez fiquem pelo beicinho com os tapetes de relva na Avenida da República e com “n” novas pracinhas, mas não há tapete algum que me faça esquecer o que foi tentar “domar” a Av. República e a Fontes Pereira de Melo até as riscar do meu mapa citadino. Idem com a 24 de Julho, idem com o Cais do Sodré, idem com a beira-rio, só para dar estes exemplos malfadados.
Sim também sei — La Palisse não diria melhor – que por vezes há que fazer grandes obras nas cidades mas aqui, tudo o indica, (ou estarei enganada?) houve uma mudança de conceção, uma alteração de estratégia. Fazer praças e pracetas pedonais substituindo carros por gente e estreitar vias (na lateral da Avenida da República passou a haver só uma fila a não ser que a outra esteja ainda escondida no bolso de algum operário), pressupõe a escolha de um novo modelo e de outra opção. É certo que houve debate e intervenção pública mas não parece ter sido devidamente atendida. Lisboa com menos automóveis? E os transportes, nesse novo figurino? Autocarros ronceiros e alguns tão velhos que um dia se desconjuntam? Um metropolitano que, além do seu modesto raio de ação, já conheceu melhores dias?
Repare-se nisto: o papel para os bilhetes aparentemente sumiu-se (mas sumiu como, santo Deus?) e consta não haver dinheiro para substituir as peças avariadas de diversas carruagens doentes, o que revela bem o (alto) preço da troca de investimentos nas infra estruturas pelos rendimentos dos funcionários públicos. Ou… como um voto conta mais que um utilizador. A qualquer hora (ando muito de Metro) se ouvem anúncios de “atrasos”, informações de que circulam comboios “com apenas três carruagens”, pedidos de “compreensão”. Para não falar das constantes avarias — estação sim, estação não — nas escadas rolantes.
O cúmulo da falta de respeito pelo “utente” pagador de impostos, mas quando ele pertence à terceira ou quarta idade e se vê armadilhado sem pré-aviso num destino com escadas rolantes paralisadas, convenhamos que quer a incúria, quer o desprezo, aumentam de grau.
Ora tudo isto que deploravelmente descrevo, tem a ver comigo, connosco lisboetas que pagamos impostos e agora até nos empurraram — à força – para dentro do carrossel das taxas e taxinhas. Lisboa não é só um destino de “moda”, o prestígio de acolher a Web Summit, uma gastronomia em alta ou a “movida” que vem no “Guardian” ou na “Monocle” (mesmo que isso nos conforte o ego e signifique algo de bom), é o lugar onde vivo. E, como tal, o lugar onde trabalho, tenho horários, responsabilidades e compromissos (e pago, repito).
Não me parece “fair” tropeçar em passeios esventrados, circular a pé por pavimentos que por vezes lembram a montanha russa, gastar tempo à espera de vez no Metro porque só há três carruagens, ver lixo não recolhido durante dias, ter ruas e ruas transformadas em estaleiros (e isto também são infraestruturas).
De modo que acenarem-me com graciosas novas praças ou tapetes de relva não me comove por aí além se o resto ou grande parte dele – o real dia a dia, a rotina quotidiana, o “viver aqui” — permanecer uma luta desigual.
3. Falei do lixo. Tenho e não tenho razão, e a propósito lembro sempre uma frase que ouvi a João Soares, era ele presidente da Câmara, numa conversa onde o invectivava sobre a sujidade de Lisboa: “mesmo que eu tenha caixotes do lixo de dez em dez metros em toda a cidade, haverá sempre o lixo que os lisboetas continuam a deitar para o chão”.
É verdade, cruel verdade, não temos emenda, somos porcos. Atirar para o chão é gesto solto e fluido, cuspir também, deixar o solo alcatifado de beatas, embalagens e papeis também. O que logo esbate a “culpa” de autarcas e vereadores. Mas o que acima sublinhei não foi bem isso, mas as frequentes falhas na rotina da limpeza da cidade — jardins, espaços públicos, ruas – e na demora da recolha do lixo. Não há cidades perfeitas? Não, mas do que falo é de boas práticas e critério: menos enfeites e mais séria administração pública, por exemplo. Falo de atenção. Ou seja, falo de respeito. Por nós, lisboetas desta Lisboa que eu amo.
4. E agora um elogio: o jardim do Campo Grande, com a sua alameda emoldurada pelas deslumbrantes palmeiras imperiais, está um mimo — depois de obras lentas e ciclópicas. Tem gente, viço e vida. E tem um belo desenho. E “diz que” irá ter um ginásio, quem sabe uma piscina. Mas o que mais gosto de lá ver diariamente são os seus cinco campos de padle cheios – quem diria? — entre o fim da tarde e o fim da noite. Uma novidade que é uma surpresa e ambas são um bom sinal.

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