De que lado vai estar, no dia da morte do Colégio das Caldinhas?

Manuel Araujo
Observador 2/6/2016

Na Europa, os alunos que têm acesso livre às escolas privadas apoiadas pelo Estado já são 16% em Inglaterra, 20% em França, 25% em Espanha, 50% na Bélgica e 70% na Holanda. Em Portugal eram 4%.

Ninguém está preparado para morrer. Cada um de nós morre um pouco com a morte dos outros, principalmente quando não fazemos nada ou o suficiente para os salvar.
O povo chama-lhe, com ternura e admiração, “Colégio das Caldinhas”. Pelo seu historial, o Instituto Nun’Alvres é o maior património educativo, científico e cultural vivo da região do Ave.
A história do Colégio, com 157 anos, é uma história ímpar de luta pela “liberdade de educar”. O INA destaca-se pelos professores que marcaram gerações. Como o jesuíta, padre Manuel Simões, meu professor de literatura, que foi o primeiro diretor da Casa de Camilo. Quem frequentou, como eu, o “Colégio das Caldinhas” transformou-se em melhor pessoa e aprendeu a ser livre.
O colégio nasceu em Campolide, em 1858, em Lisboa. Passados 52 anos, os jesuítas foram expulsos pela 1ª República. Em 1912, reabrem o colégio, na Bélgica, como escola portuguesa. Em 1914, com o surgimento da primeira Grande Guerra, vêm para a Galiza, onde se instalam em La Guardia (na foz do rio Minho) e chegam a ter 300 alunos portugueses.
Em 1932, são obrigados a fugir, antes de começar a guerra civil espanhola. Os jesuítas regressam a Portugal, atravessando o rio. São ajudados pelos próprios alunos e pela população local que os acarinhava, conseguindo salvar muitos haveres e o precioso material didático do colégio. Tinham planeado ir para Coimbra mas por influência de personalidades dos concelhos de Famalicão e Santo Tirso, decidem adquirir o Hotel Termal das Caldas da Saúde. Aqui, ficam 83 anos, até hoje, construindo um dos melhores colégios do país com laboratórios, museus, enfermaria, capelas, teatro, campos de jogos e bibliotecas.
No início dos anos 70, o INA abre as suas turmas aos alunos das freguesias da região que passam a ser mistas, algo que ainda não acontecia em muitas escolas do Estado.
Em 1974, o “Colégio das Caldinhas” encontrava-se fortemente ligado à comunidade. Nesse ano, eu estava no 4º ano do INA (atual 8º ano). Vivi diretamente as alegrias e os dramas da revolução, dentro da escola. Em 1975, o governo controlado pela extrema-esquerda militar quis nacionalizar o colégio. As famílias das freguesias vizinhas resistiram e opuseram-se.
Com a “democratização do ensino”, os primeiros governos pedem ao “Colégio das Caldinhas” para acolher mais alunos. É celebrado um contrato de associação. As crianças de Famalicão e Santo Tirso passam a frequentar gratuitamente o colégio. A comunidade enche-se de alegria. Todo o saber e capacidades do colégio estavam, agora, ao serviço de muitos mais alunos. O colégio continua a investir. Surge a escola infantil, o centro de cultura musical e a escola profissional e artística.
Há três semanas, estava tudo calmo quando o governo decidiu, por motivos ideológicos, acabar com os contratos de associação celebrados com as escolas privadas, o que significa, na prática, o fecho e o fim do amado INA, uma vez que, há 40 anos, o colégio terminou com o internato, passando a ser uma escola gratuita e aberta a todos.
Depois de século e meio de vida, o “Colégio das Caldinhas” que resistiu às perseguições, às guerras, às ditaduras e às revoluções vai ser condenado à “morte” em plena democracia! Que estranha democracia é esta que é capaz de acabar com o que temos de melhor?!
Um património educativo ímpar no nosso país vai ser destruído. A nossa comunidade vai ficar mais pobre. Que interesse tem transferir, à força, milhares de crianças para escolas que ficam mais caras ao Estado e que as famílias não querem?
Creio que os professores da região se pudessem ter um lugar seguro até à sua reforma – que o simples facto de serem funcionários públicos lhes dá -, preferiam, pelo mesmo salário, mudarem-se para o INA (ou para um dos colégios privados da região) pela alegria, pela inovação, pela proximidade dos pais e pelo sentido de pertença à escola.
A maioria dos professores de Famalicão e Santo Tirso não concorda com a oportunidade da decisão do governo que condena ao desaparecimento os colégios que serviam bem a nossa comunidade. Davam aos pais mais “liberdade de educar” os seus filhos e, através de uma competição positiva, faziam melhorar as escolas à sua volta.
O Estado deve garantir uma educação pública, definir o curriculum nacional, controlar a qualidade das escolas e organizar exames justos e iguais para todos. Isto não significa que todas as escolas onde há um serviço público de educação tenham de ser do próprio Estado. Podem ser geridas por uma entidade estatal (a escola pública) ou por uma entidade privada (colégios que recebem todos os alunos de forma gratuita, como na nossa região).
Em Portugal, 4% dos alunos estão em colégios que prestam um grande serviço público de educação. Na Europa, os alunos que têm acesso livre às escolas privadas apoiadas pelo Estado já são 16% em Inglaterra, 20% em França, 25% em Espanha, 50% na Bélgica e 70% na Holanda.
Nesses países, a educação está melhor porque existe “liberdade de educar” e as famílias têm poder de escolha. Esta forma de prestar serviços públicos não é novidade. Por exemplo, o serviço público de transportes de Évora (município sempre governado à esquerda) é gerido e prestado por uma empresa privada, a Barraqueiro. E esse facto só melhorou o serviço de transportes da mesma cidade.
Perante a morte já anunciada do “Colégio das Caldinhas” (e das outras grandes escolas com contratos de associação da região, como a Didáxis, o Externato Delfim Ferreira e a Alfacoop), a comunidade está a reagir. Na linha da frente, devem estar os líderes das nossas organizações e os líderes políticos eleitos.
O Município deve juntar-se à causa da “liberdade de educar”, de alma e coração. A política municipal de educação não pode ser uma mera peça de engrenagem da máquina do Ministério. Já fiz parte do Conselho Municipal da Educação e verifiquei, in loco, que as competências administrativas delegadas nas autarquias (essencialmente, transportes e pessoal auxiliar) têm reduzida influência nos resultados das escolas. O importante é dar às escolas autonomia de gestão e mais poder às famílias na escolha da educação para os seus filhos. Enquanto as escolas públicas não puderem escolher diretamente os seus professores e não tiverem orçamento próprio, dificilmente podem melhorar a sua relação com os pais porque estes sentem que o diretor não tem influência decisiva na vida real da escola.
Na nossa região (Famalicão e Santo Tirso), até agora, 32% dos alunos estudam em escolas privadas. São gratuitas, abertas a todos os alunos e com verdadeira autonomia. Não podemos desperdiçar esta grande vantagem. Competências administrativas do Ministério que passem para o Município nunca compensariam a falta de “liberdade de educar” que, hoje, é real e que as famílias usam para escolher a escola de que mais gostam.
O Município deve agir na defesa da “liberdade de educar”. Os alunos não podem ser transferidos à “força” por decisão administrativa do Ministério da Educação que, aliás, deve deixar de gerir escolas, a partir de Lisboa. Mesmo os estabelecimentos públicos devem funcionar com autonomia de gestão para cativarem alunos pelo que a escola vale por si mesma e não porque são forçados a matricular-se ali, contra a vontade das famílias.
O “Colégio das Caldinhas” e as escolas privadas são, aliás, fonte de inspiração para a região. Com menos dinheiro por turma do que o Estado gasta, conseguem ter resultados positivos e fazer obra. E não há custos duplicados, como dita a propaganda. O Estado paga de um lado ou paga do outro. Na realidade, uma turma de uma escola privada custa-nos 80.500 euros por ano. Se a mesma turma passar para a escola pública do Estado vai custar-nos 97.500 euros (não fica de graça, é necessário contratar professores, auxiliares, transportes e refeições).
Alunos, pais e professores em Famalicão levantaram-se em peso e têm colorido a paisagem de amarelo, numa cor que significa a aproximação de perigo.
No dia em que morrer o INA, as crianças nunca mais vão ter memórias da enorme coleção de borboletas, dos animais embalsamados e da pepita de ouro que reluz no meio das pedras e de minerais de todo o mundo que faz parte da belíssima coleção dos museus do “Colégio” que me fascinou para sempre.
Se a comunidade e os seus líderes deixarem morrer o “Colégio das Caldinhas”, em plena democracia, depois do INA ter sobrevivido a perseguições, guerras, ditaduras e revoluções é um sinal terrível com consequências sérias.
Quando se permite que se retire às famílias a possibilidade que tinham de escolher o melhor para os seus filhos é porque deixamos de acreditar ou não temos força. É sinal que, apesar de sermos um concelho empreendedor, na educação desistimos das pessoas e do futuro porque deixamos que levassem a nossa liberdade. A isto, chama-se decadência.
Nas cerimónias da morte do “Colégio das Caldinhas” (e das outras escolas privadas da região do Ave) vão aparecer dois grupos: os heróis ainda vestidos simbolicamente de amarelo que lutaram até ao fim e várias pessoas de vestido, fato e gravata preta que vêm para a circunstância. Nesse dia, de que lado vai querer estar?
Antigo aluno do Colégio das Caldinhas, engenheiro e gestor
Nota: Texto adaptado de carta aberta publicada, esta semana, em jornais regionais.

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