Quando as crianças são coisas

Inês Teotónio Pereira
DN 2016.05.14

A partir de hoje as crianças são coisas e as mulheres podem ser incubadoras. As crianças conseguiram este estatuto e alcançamos assim a plenitude de uma sociedade civilizada e moderna. Estamos como queremos. A maioria dos deputados eleitos pelos portugueses votou as barrigas de aluguer, ou a maternidade de substituição, ou a gestação de substituição. Agora uma mulher já pode altruisticamente, ou não, gerar um filho e cedê-lo a alguém que não possa engravidar. Em causa está o interesse de quem não pode ter filhos e quer ter. Mais nenhum. A mãe (a primeira), desde que lhe sejam pagas as despesas da gravidez, pode gerar um filho e dá-lo. Dizem que é só para os casos extremos. Casos em que alguém quer muito ter filhos e não pode, e casos em quem a mãe (a primeira) não se importe de gerar um filho e cedê-lo como se o filho fosse um dente que demora nove meses a arrancar. A isto chama-se contrato de gestação. O objeto do contrato é uma criança. A mãe, o seu corpo, ou até o seu útero, é o invólucro da coisa e pode ser agora alugada por meio de um contrato. Só o lucro é proibido, de resto é como se se encomendasse um cachorro ao dono de uma cadela. Nos países onde esta aberração já acontece, somam-se casos de mães que se recusam a abortar porque a outra parte desistiu do filho, de crianças que nascem com deficiências e que são rejeitadas por ambas as partes, de gravidezes de gémeos quando a encomenda era só um filho, de contratos que são simples negócios lucrativos e de barrigas alugadas porque não se quer estragar o corpo com gravidezes. São casos destes que chegarão cá mais cedo do que tarde e que a imaginação humana não consegue prever. E não, esta lei não foi feita à revelia de ninguém: é a expressão da maioria da vontade dos portugueses representados na Assembleia da República. Resultado de uma de duas coisas: ou andamos todos a dormir ou queremos mesmo aberrações destas. Seja como for, é sintoma de que alguma coisa neste país não está bem. Que os cães não são cadeiras, já sabíamos; que as crianças o são, ficámos ontem a saber.

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