Nas entrelinhas: Autoritarismos florescentes à sombra da protecção

Helena Matos
Observador 20160403

O presidente da CML manda os senhorios pagar as lojas históricas. Para protegê-las, diz. Na Alemanha criam-se carruagens só para mulheres. Para protegê-las, dizem. Não nos protejam mais, por favor.

No sábado Fernando Medina manda os senhorios pagar as lojas históricas. No domingo manda-lhes pagar o regresso da classe média à cidade.
Boa parte da entrevista ao Diário de Notícias de Fernando Medina, presidente da CML, consiste em dar conta daquilo que ele, enquanto autarca, entende que os senhorios têm de fazer por Lisboa. E assim, ao sábado, Fernando Medina entende que os senhorios das lojas históricas têm de ser cerceados dos seus direitos de propriedade porque há valores em jogo mais importantes, a saber a preservação das lojas históricas.
Pressuroso, logo o Diário de Notícias anuncia na sua capa: lojas históricas vão ser protegidas. Não há aspas. É uma certeza. Vão ser protegidas. Ponto. Na verdade o termo protecção não quer dizer proteger nada mas sim impedir qualquer manifestação de liberdade do mercado. No caso do arrendamento. Na verdade a imagem da protecção é poderosa mas não resulta. Vivemos desde 1910 a ser protegidos. Foi mais de um século de protecção que deixou Portugal sem mercado de arrendamento, prédios a cair, as novas gerações endividadas com o “empréstimo da casa” e um mercado paralelo de trespasses de lojas e casas cujo valor mais apreciado era precisamente a renda histórica. Mas sempre com os inquilinos protegidos no dizer dos jornalistas que invariavelmente apresentavam qualquer alteração ao congelamento como uma medida atentatória dos mais elementares direitos.
Ora a não ser que por protecção destas lojas se entenda embalsamá-las não se vê que protecção será essa. Durante décadas e décadas o centro da cidade esteve cheio de lojas cujos inquilinos pagavam rendas baixíssimas e jamais podiam ver os seus contratos extintos. Mais protegido do que isto não existe. Contudo nada nessas lojas florescia. Além do pó, naturalmente.
Agora arranjou-se o chavão de loja histórica (sendo que muitas dessas lojas agora históricas nunca teriam aparecido caso outros espaços históricos não tivessem desaparecido) para justificar esta intervenção no mercado de arrendamento. De histórico em histórico acabaremos a recriar a camoniana taberna do Mal Cozinhado!
Mas não ficámos por aqui. Ou melhor dizendo, não ficou por aqui Fernando Medina.
No domingo o mesmo Fernando Medina, certamente esquecido que na véspera declarara que os direitos dos senhorios podem ser o que a CML quiser, anuncia que a câmara vai disponibilizar “terrenos ou propriedades suas para reabilitar, concessiona durante um determinado período (30, 35, 40 anos), a entidade privada constrói ou reabilita, recebe os valores das rendas e no final do período da concessão entrega o património à câmara.” Quanto ao valor da renda será fixado: “a taxa de esforço com o arrendamento deve sempre ficar-se por 30% do rendimento, não deve superar esta fronteira.”
Resumindo: a mesma CML que ao sábado manda os direitos dos senhorios dar uma volta pretende no domingo que empresas privadas construam, reabilitem e mantenham edifícios, durante 30 a 40 anos. Em troca essas empresas recebem as rendas que Fernando Medina declara que não podem ir além dos 30 por cento do rendimento dos inquilinos. Presume-se que a CML lá estará para taxar as rendas e cobrir a diferença quando e se os inquilinos tiverem uma quebra nos rendimentos. Isto numa versão mais bonançosa dos factos porque no caso dos inquilinos que pura e simplesmente não pagarem a renda qual vai ser a prática seguida? Note-se que nos bairros administrados pela CML, só no ano de 2014, mais de um terço das rendas estava por pagar. Vão essas empresas-senhorios poder avançar com despejos ou terão a arquitecta Roseta a chorar pelos estúdios de televisão declarando que os despejos não vão avançar? Sem esquecer as manas Mortágua e o deputado João Oliveira do PCP a fazerem do incumprimento nesses bairros uma bandeira da luta contra as políticas da austeridade.
E quem garante a essas empresas que ficam livres de uma iniciativa semelhante à que aconteceu com a electricidade, em que o Governo de um dia para o outro transferiu para as empresas do sector (e consequentemente para os outros clientes dessas empresas) o assumir dos custos com a tarifa social de electricidade para pessoas com baixos rendimentos ou que conseguem esse almejado estatuto embora usufruam rendimentos que lhes permitem viver desafogadamente?
Aliás, tal como aconteceu com o alargamento automático da tarifa social de electricidade, que é uma medida ambiental e socialmente disparatada e que só serviu para que o Bloco de Esquerda colocasse uns cartazes esganiçantes e esganiçados, também as entrevistas de Fernando Medina serviram para que se escrevesse: Lojas históricas vão ser protegidas. Medina quer classe média de volta a Lisboa. No fim tal como aconteceu com o congelamento das rendas o resultado será o inverso do prometido mas nessa altura outros anúncios igualmente inversos e igualmente aplaudidos farão títulos.
“Operadora de comboios alemã reserva carruagem a mulheres para prevenir ataques sexuais”
Uma carruagem para mulheres? Na Alemanha? Em 2016? Mas não estamos na UE? Naquela UE que aprova regulamentação sobre a obrigatoriedade de mulheres no conselho de administração das empresas? Que custeia estudos e regulamentos sobre a representação pictórica dos géneros nas portas das casas de banho e nos semáforos? Naquela mesma UE cujos países têm comissões para avaliar as ofensas de género? Nessa UE, em que como acontece em Portugal, um cidadão vai a tribunal porque chamou esganiçadas às dirigentes de um partido? E nessa mesma UE vamos ter carruagens nos comboios exclusivamente para mulheres e também, pormenor fantástico, para as crianças de ambos os sexos até aos dez anos? Quer isto dizer que se as crianças forem na carruagem dos homens correm o risco de ser molestadas?
Mas particularizemos um pouco mais: quem ataca as mulheres? O que acontece para que num país governado por uma mulher, com mulheres em destaque na política, nas universidades e no mundo do trabalho, de repente se tome uma medida destas? E porquê agora, em 2016, quando há décadas as mulheres andam nos comboios alemães sem que esta questão se colocasse?
Dir-se-á que na Ásia e em alguns países da América Latina também existem estas carruagens. Pois é: existem na Ásia e em alguns países da América Latina. Na Europa não existiam. Vão passar a existir na Alemanha e discute-se a sua criação em Inglaterra.
Um misto de fatalismo e silêncio abate-se sobre este assunto. Ora isso é tão mais estranho quanto se conhece a algazarra que acompanha as questões da igualdade entre os sexos a que agora, segundo a brigada linguística da nova polícia dos costumes, se deve chamar género. Acontece que os activistas do género têm no multiculturalismo outra causa maior e como estes ataques sexuais são imputados ou podem ser imputados a estrangeiros que não cabem no paradigma do machista que se pode e deve odiar e denunciar – a saber cidadão preferencialmente branco e cristão – aceitam-se com placidez, quando não com entusiasmo, medidas que no passado se denunciaram como vergonhosas. E que são vergonhosas.
Ao assumir-se que uma parte das pessoas que vive num país pode não respeitar nem os costumes nem a lei desse mesmo país está a abrir-se uma caixa de Pandora. Por exemplo, se alguma mulher entrar na carruagem masculina essa decisão pode ser interpretada como um gesto de consentimento para ser sexualmente agredida? E se temos carruagens para mulheres porque não criar carruagens para pessoas de ambos os sexos que não querem viajar acompanhadas de energúmenos que põem música alto, metem os pés nos assentos dos bancos e dizem palavrões? E porque não, hipótese que me parece razoável acima de todas, expulsar dos comboios quem não se sabe ou não quer comportar? Ou isso apenas se aplica aos do costume?

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