O que o presidente fez

Rui Ramos | Observador | 8/3/2016

A visão que Cavaco Silva tem da política não é tecnocrática, mas trágica. A sua preocupação foi sempre evitar rupturas que as instituições e as finanças do país não seriam capazes de absorver.

A presidência de Cavaco Silva chega ao fim. O que fez ele, durante dez anos? Mas antes de responder a essa pergunta, convém lembrar o que lhe fizeram. Cavaco Silva foi, como tem sido lembrado, o primeiro presidente em quem nunca o PS ou o PCP votaram. Mas foi também o único presidente civil deste regime que não emergiu das dinastias lisboetas, e que não se deixou amestrar pelos seus mestres-de-cerimónias. Nunca teve por si os donos do regime. Isso explica algumas coisas.
Não é verdade que Cavaco Silva tenha começado amado, para acabar odiado pelo país. Cavaco Silva não representa uma desilusão amorosa, mas outra coisa: o choque entre as duas faces do regime, entre uma democracia de eleitores, que ele conseguiu mobilizar como mais ninguém, e uma oligarquia lisboeta de políticos, intermediários de negócios e comentadores, que desde 1985 sempre o encarou uma limitação ao seu poder. Cavaco Silva ganhou eleições, mas nunca conquistou a oligarquia. Por isso, a partir de 2008, o socratismo pôde apostar numa guerra ao presidente em que contou com a companhia do PCP e a ambiguidade frequente do PSD. É esse o contexto do caso das “escutas” em 2009, do BPN em 2011, ou das “pensões” em 2012. Não se tratou de simples “erros de comunicação” da presidência.
No entanto, o presidente com quem a oligarquia fez questão de romper, foi um presidente que tudo fez para evitar rupturas. Já as tinha evitado no governo, entre 1985 e 1995, quando tentou mudar o país, mas sem confrontos. Nunca foi a versão portuguesa de Thatcher. Desde 2006, perante uma maioria absoluta do PS, rejeitou a ideia soarista do presidente como líder da oposição. A economia já quebrara, o endividamento e o desemprego subiam, mas ainda parecia possível emendar a mão. Cavaco Silva levou a sério a “colaboração estratégica” com o governo. Formou uma das melhores equipas técnicas que alguma vez esteve em Belém. Colaborou no aperfeiçoamento de centenas de diplomas legislativos.
Em 1985, Cavaco Silva pôs termo ao Bloco Central. Mas nunca promoveu a bipolarização enquanto segregação ideológica sem pontes. Em 1989, entendeu-se com o PS na revisão constitucional. Em 1991, apoiou Mário Soares — a única vez, desde 1976, que o PS e o PSD votaram no mesmo candidato presidencial. É falso que alguma vez, na presidência da república, tenha tentado favorecer o PSD contra o PS. Desde 2011, repudiou o “directório europeu”, avisou contra a “espiral recessiva”, sujeitou o ajustamento ao Tribunal Constitucional. Em Julho de 2013, procurou envolver o PS na governação, em troca de eleições antecipadas. Esteve sempre convicto de que nunca haveria mudanças em Portugal sem o PS. Os líderes socialistas nunca quiseram ou puderam. É culpa do presidente?
Em Outubro do ano passado, numa entrevista (aliás, excelente) à RTP, António Barreto lamentou que o presidente da república se tivesse poupado a si próprio. Não foi assim. Pelo contrário. Cavaco Silva gastou-se. Gastou-se em 2008, com o “estatuto dos Açores”, que a oligarquia não “percebeu”, porque, francamente, quem é que dá importância às instituições? Portugal é o único país do mundo em que “institucionalista” tem um sentido pejorativo.
Mas Cavaco Silva preocupou-se mesmo com as instituições. Em 2006, representava outro tempo, o da prosperidade de 1986-1992. Poderia ter usado esse capital para liderar a ruptura com Sócrates em 2009, ou para ultrapassar Passos Coelho e dirigir o ajustamento em 2012. A constituição não deixava? Provavelmente teria deixado, se o presidente quisesse. Mas Cavaco Silva preferiu não o fazer, marcou posições, mas furtou-se sempre a rupturas. Porque compreendeu uma coisa que os seus críticos nunca compreenderam: que numa crise como a presente, a acção presidencial, para ser eficaz, não poderia ser só contra este ou aquele governo, mas contra todos os partidos, contra todo o sistema, com riscos políticos e financeiros imprevisíveis.
Imaginem que Cavaco Silva tinha demitido Sócrates em 2009, dissolvido a Assembleia da República em 2013, ou recusado a indigitação a António Costa em 2015. Em cada um desses casos, não teríamos tido apenas uma mudança de governo, mas o perigo de um curto-circuito do regime, quer pela reacção dos oligarcas, quer pelas circunstâncias do país. Ao contrário do que é costume dizer, a visão que Cavaco Silva tem da política não é tecnocrática, mas trágica. O seu apreço pelo consenso e pelo compromisso não vem da ideia de que todos podem pensar o mesmo, mas de que é necessário evitar choques que as instituições e as finanças do país não seriam capazes de absorver. A história ficou sem algumas páginas dramáticas, mas as nossas vidas com alguns dias apesar de tudo mais tranquilos. Foi isso que o presidente fez. É pouco?

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