Misericórdia e sobriedade

Guilherme Oliveira Martins, Voz da Verdade, 20.Dez.2015

O Jubileu da Misericórdia assinala simbolicamente os cinquenta anos da conclusão do Concílio Vaticano II, ocorrida a 8 de dezembro de 1965, no dia da Imaculada Conceição. O Papa Francisco convoca este jubileu extraordinário em nome de um desígnio de abertura, de compreensão, de justiça e de paz - «ninguém pode ser excluído da misericórdia de Deus» e a Igreja, como corpo místico e como instituição, «é uma casa que acolhe todos e não recusa ninguém». «As suas portas estão escancaradas para que todos os que são tocados pela graça possam encontrar a certeza do perdão. Quanto maior é o pecado, maior deve ser o amor que a Igreja manifesta aos que se convertem». As palavras do Papa são claríssimas. E ainda há dias as conclusões do Sínodo da Família o recordavam, com uma ênfase especial. É aqui que deveremos insistir. O Concílio tornou-o muito claro nas suas conclusões fundamentais e por isso o Papa faz questão de assinalar a atualidade dessa lição. E, num tempo de indiferença e de vazio de valores, em que o abismo da violência atrai a violência, o tema da misericórdia assume uma importância crucial.
De que falamos? Etimologicamente, misericórdia refere-se ao «coração compadecido» – miseratio, miserationis significa em latim piedade ou compaixão e cor, cordis, coração. Estamos, pois, no cerne da compreensão de que os valores éticos apenas ganham sentido quando são encarados em concreto, não em abstrato. Falar do bem, do belo, do bom, do justo e do verdadeiro apenas pode ser entendido a partir do exemplo. As parábolas do bom samaritano ou do filho pródigo mostram como o amor do próximo não obedece a uma receita ou a um modelo, mas à possibilidade de termos resposta para o inesperado das situações mais inusitadas. Há dias na apresentação do livro de D. Manuel Clemente «O Evangelho e a Vida – Conversas na Rádio no Dia do Senhor (Ano C)» (Lucerna, 2015), no início deste novo ano litúrgico em que somos acompanhados por S. Lucas (exatamente o Ano C), lembrávamos a noção de «próximo»: «a proximidade não é uma definição abstrata, a proximidade é um envolvimento concreto. (…) A proximidade envolve-me a nós, a mim; não podemos ficar à espera de que nos deem um próximo para servir: nós, eu, é que temos de nos fazer próximos. Portanto, a proximidade (…) é, antes de mais uma compaixão» (p. 196).
Morreu no início de novembro o filósofo René Girard (1923-2015). Disse-nos que «as nossas sociedades não se definem apenas pelo que integram, mas também pelo que excluem». Daí a necessidade de tomar consciência da violência arcaica que ainda persiste em nós… Ao contrário daqueles que referem a Paixão de Cristo como um mito, René Girard afirma a singularidade e a essencialidade da revelação cristã. Esta não só rompe a lógica negativa da «violência mimética», mas também revela o substrato de toda a cultura humana – e assim o sacrifício apazigua as massas e tem uma função unificadora da sociedade. É difícil de compreender o mistério da morte de um inocente, Jesus Cristo, cujo sacrifício supremo permite abrir as portas da reconciliação e do reconhecimento da dignidade humana. Deixa de haver um bode expiatório culpado, que concentra em si a culpa e o pecado, para existir realização suprema do amor. No fundo, a misericórdia tem a ver com essa concretização do mandamento novo.
Assim, o «coração compadecido» da misericórdia leva-nos a uma caminhada exigente de compreensão dos outros e das diferenças, como essenciais na relação humana. As pessoas e as comunidades relacionam-se entre si de modo a permitir que a liberdade e a responsabilidade se completem, que a igualdade e a diferença se articulem e que as trocas e os dons se realizem de modo que a economia se oriente para a dignidade humana. Em tempo de profundas mudanças na sociedade global, bem evidenciadas na crise cujos efeitos ainda sofremos, a noção de misericórdia conduz-nos à sobriedade, isto é, à adequação entre meios e necessidades, entre justiça e eficiência. Mais do que assistencialismo social, precisamos de responsabilidade social e de distribuição justa e equitativa dos recursos. Daí a necessidade de pôr a justiça e a paz no centro do serviço do bem comum – com a serena consideração da sobriedade, que está implícita no coração compadecido da misericórdia.

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