Coisas que nunca mudam: as não notícias

Helena Matos | Observador 3/1/2016

As não notícias são tão importantes quanto as notícias. Às vezes ainda mais que as notícias. Porque as não notícias mostram como os jornalistas resistem a desfazer as suas ilusões.
As não notícias sobre a França. Em França, país bem perto de nós, foram incendiados na passagem de ano 804 veículos. Note-se que estes números estão a ser apresentados como positivos pelas autoridades francesas porque na passagem de 2014 para 2015 arderam mais 136 carros. Ou seja 940. Claro que nessa data a França não estava sob medidas de segurança tão severas quanto as actuais (os atentados ao Charlie Hebdo aconteceram dias depois, a 7 de Janeiro de 2015 e só em Novembro tiveram lugar os atentados de Paris) e de modo algum nas ruas daquele país estavam então destacados os mais de 100 mil agentes que integraram o dispositivo de segurança neste final de 2015. Como é possível que se pegue fogo a oito centenas de veículos com mais de 100 mil agentes policiais e militares nas ruas? É um mistério.
Mas convenhamos que é um mistério bem menor que o silêncio que impera nos jornais e televisões da restante Europa sobre o que acontece naquele país. Ou seja como é possível que não tenhamos informação sobre estes incidentes? Ou, para não sairmos ainda da temática dos carros incendiados, como não soubemos das 700 viaturas que arderam no 13 de Julho deste ano? Nem sequer o facto de no dia em que a França comemora a sua festa nacional ter havido também escolas incendiadas fez com que o destaque noticioso fosse maior.
Há momentos em que quero acreditar que tudo se explica pelo facto de hoje não se falar francês e por consequência a França só ser notícia quando sai nos jornais ingleses, de preferência no Guardian. Mas digamos que essa explicação se pode aplicar ao reino do Butão e respectivo lugar no índice de felicidade mas não à França onde a não notícia se tornou uma opção consciente: da França vieram primeiro revoluções e ilusões. Agora, para não comprometer a memória das primeiras e o poder das segundas, não se noticia.
Assim, ao mesmo tempo que assistimos à pilhagem de uma qualquer loja no mais recôndito canto do Ohio, nunca vemos as carcaças queimadas dos automóveis em França. Nem sequer casos como os recentemente ocorridos no final de Dezembro em Ajaccio, capital da Córsega, conseguiram romper este muro de silêncio. Digamos que em Ajaccio tudo começou como de costume: os bombeiros foram chamados ao que se designa como bairro sensível. No caso os Jardins do Imperador. Uma vez lá chegados os bombeiros foram emboscados e agredidos. Nos dias seguintes sucedem-se as manifestações de corsos indignados com o que acontecera nos Jardins do Imperador. Gritam que não querem acabar fechados em casa com medo como acontece nos banlieu do continente. Mas não só. Gritam também palavras de ordem contra os árabes e numa das manifestações rompem a barreira policial e saqueiam um local de culto muçulmano.
Qual foi o destaque noticioso destes gravíssimos incidentes? Digamos que ele passou quase tão discretamente quanto a indicação de que desde Feveiro de 2015 já se registaram em França 200 incidentes contra militares, sendo que sete desses incidentes foram classificados como muito graves. Aliás, logo no início deste 2016, em Valence, registou-se um desses incidentes: um homem tentou atropelar quatro militares que faziam segurança junto a uma mesquita.
As autoridades, mimetizado a reacção que mantiveram até aos ataques de Novembro em Paris, logo declararam ser o homem em questão um lobo solitário para mais desequilibrado. Apesar de na sua casa ter sido encontrada propaganda jihadista, a pista terrorista não está ser seguida e admite-se que talvez exista “un lien entre son acte et une certaine religiosité”… que é como quem diz uma ligação entre o seu acto e uma certa religiosidade. Qual será a religiosidade em questão?… Como se vê, não é por falta de notícias que a França não está nas notícias. É sim porque se ficou sem narrativa. Quando o próximo sobressalto chegar, lá aparecem as carinhas a chorar mais o facebook às risquinhas e a Torre Eiffel muito fofinha. Sinais exteriores de quem não quis ver, nem ouvir nem saber.
As não notícias sobre a Grécia. Este Inverno deve estar a ser bem cálido em Atenas. Porque neste Inverno já ninguém tem frio na Grécia. Nem fome. Nem sonhos desfeitos. Nem medicamentos inacessíveis… A Grécia morreu para as notícias no dia em que os jornalistas ocidentais deixaram de ver em Tsipras o Che sem espingarda. Já não sabemos se Tsipras vai a Bruxelas, se leva gravata, se a mulher se zangou ou não com ele… Tsipras desapareceu noticiosamente falando em Julho deste ano. No momento em que deixou de ser o rosto da alternativa, do bater do pé, do virar da página da austeridade e de todas as outras categorias do pensamento mágico a que o socialismo se reduziu, Tsipras saiu dos ecrans. Por estes dias teve um regresso fugaz porque voltou a vestir a pele do Tsipras que ia mudar a Europa. Ou seja fez mais do mesmo: disse que não ia ceder aos credores. E como é disso que os jornalistas gostam lá lhe deram uns segundos da velha fama.
Curiosamente pasmamos com as fotografias em que Estaline mandava apagar os opositores mas este processo de apagamento dos heróis mediáticos que acontece em plena democracia não parece suscitar qualquer perturbação. E contudo ele é revelador do fogo fátuo que enche boa parte daquilo a que chamamos notícias, reportagens e investigações. Um desejo para 2016? Quero o Tsipras de volta. Quero saber o que faz, o que decide, o que legisla. E de caminho quero saber onde param os postais autografados por Tsipras, que se vendiam a três euros, cada com que umas almas militantes se propunham juntar dinheiro para libertar a Grécia dos credores. Como não podia deixar de ser a iniciativa foi noticiada com alarido aqui, mais aqui, e aqui, também aqui e aqui… (é melhor ficar por aqui porque com tanto aqui o texto está a ficar cacofónico) e agora nada de nada.
As não notícias sobre Guantanamo. Quantas notícias tivemos sobre Guantanamo desde que Barak Obama foi eleito? E desde que foi reeleito? Dado o silêncio que impera sobre o assunto quase se é levado a pensar que Guantanamo fechou. O quase embargo sobre o assunto é quebrado de vez em quando por uns anúncios de que o presidente dos EUA está a ultimar um plano para fechar Guantanamo. Depois temos as inevitáveis conclusões de que Obama gostaria de fechar Guantanamo mas não pode. Porquê? Não se diz. Mas note-se que as mesmas fontes asseguram e asseguraram que o anterior presidente podia fechar Guantanamo mas não queria.
As notícias sobre os EUA e seus presidentes tornaram-se na versão mediática dos gatinhos no facebook: milhões de likes para os democratas, partilhas virais e ódios profundos para os republicanos. Informação quase nenhuma.
Opções que com um presidente não democrata e sobretudo não tão querido dos estúdios de cinema e de televisão quanto o é Barack Obama teriam gerado enorme controvérsia – a aposta cada vez mais forte na exploração dos gás de rocha – têm passado quase inadvertidas apesar de ambientalmente terem muito para questionar. E como entender essa espécie de regressão nas questões raciais em que de repente os EUA parecem ter caído? Reduzidos como estamos às notícias do tipo “EUA: polícia mata condutor negro” – se o condutor fosse branco ou asiático escrever-se-ia “EUA: polícia mata condutor branco”? – deixámos de questionar os efeitos reais daquilo a que se chamam medidas de combate à discriminação racial.
Divididos entre uma élite da qual Obama e a sua mulher fazem parte e uma maioria presa nos meandros do coitadismo, os negros norte-americanos são cada vez mais objectos de uma simplificação para não dizem infantilização nas notícias.
Mas tal como acontece com Guantanamo que era para fechar e não fechou custa muito escrever sobre as bolinhas de sabão que fizeram capa e abriram noticiários e depois se viram desfazer.

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