Uma reflexão

Inês Teotónio Pereira | ionline 20151003
Sou guarda prisional. Quinze anos depois dessa maravilha que foi o início da maternidade, para acabar assim, a guardá-los. Vivo momentos complicados
Vivo tempos difíceis: os meus filhos estão a crescer. Eles ressonam, usam desodorizante, encharcam-se em água de colónia, deitam-se à mesma hora que eu, vêem as mesmas séries que eu, discutem comigo coisas abstractas, ocupam metade do sofá, esvaziam-me o frigorífico diariamente, têm amigos que eu não conheço e, o pior de tudo, falam inglês: o que impossibilita o exercício do meu direito de manter conversas privadas com terceiros sobre eles ou sobre outros temas igualmente delicados à frente deles. 
Eu achava que os filhos crescidos davam menos trabalho que filhos não crescidos. Mas não, os dois dão imenso trabalho: os pequenos fazem barulho e infernizam as nossas vidas em sentido formal; os grandes ocupam espaço e invadem a nossa vida em sentido material. Eles já percebem tudo, querem dar opinião sobre tudo, já têm quereres que infelizmente têm de ser respeitados e as birras são agora amuos e malcriadões. Ora, uma coisa é ter um miúdo de 5 anos a fazer uma birra no chão o que se resolve com uma palmada no rabo seguida de colo; outra coisa é ter uma pessoa do nosso tamanho ou maior a fazer uma birra silenciosa por uma razão qualquer muito intensa, pessoal e secreta gerando tensão, mal estar, batendo com as portas e fugindo para o quarto ao abrigo do telemóvel. Se os mais novos nos levam ao desgaste físico, os mais velhos levam-nos ao desgaste psicológico, psíquico, financeiro, etc.
Um filho crescido olha, e bem, para os pais como um preso encara os guardas prisionais. E é mesmo isso. A nossa missão é igual à destes guardas: controlar as saídas, alimentar condignamente os dependentes, tomar determinadas medidas quando se infringem as regras, proporcionar algum bem-estar, transportá-los, controlar os passeios e coisas deste género que requerem uma formação específica e, de alguma forma, coragem. Ora, como se sabe o ambiente nas cadeias nem sempre é bom. Há filmes sobre isso. A revolta está sempre eminente. Ou porque querem sair mais vezes, ou porque a comida é má, ou porque querem mais liberdade, menos trabalho ou mais televisão. E é isto que eu sou: guarda prisional. Quinze anos depois dessa maravilha que foi o início da maternidade, para acabar assim, a guardá-los.
Vivo, portanto, momentos difíceis. Os meus filhos crescidos, tal como a população prisional, queixam-se. Com ou sem razão, não sei. Mas a verdade é que ambicionam a liberdade que eu lhe condiciono. Já os mais novos, ao contrário, bem que os podia enxotar que eles jamais sairiam da gaiola – adoram estar presos e por eles vivíamos algemados uns aos outros.
Ontem houve um momento que me levou a esta reflexão: a contestação da população prisional doméstica era a liberdade de escolher o curso ou mesmo a liberdade de não escolher curso nenhum. Não têm liberdade plena, expliquei eu. A escolha, enquanto estiverem neste estabelecimento, não é pessoal, é mais ou menos colectiva. “Mas quando eu fizer dezoito anos já posso fazer o que quiser”, disse um deles. Nada disso: aos dezoito anos a única coisa que muda é que passam a ter mais deveres, as liberdades, essas, mantêm-se condicionadas, os direitos escassos e quanto às garantias, não há nenhumas. Um deles viu a sua carreira de Mourinho em perigo, o outro, que quer viver numa caravana e trabalhar num café, amuou, e o único que disse alguma coisa estruturada apesar de ser mais novo do que os outros dois, o melhor que conseguiu foi declarar que quer “ser como o Pires de Lima, não sei é qual é o curso”. O Pires de Lima? Mas porquê ele? “Porque sim.” A conversa ficou por ali com os sonhos dos meus meninos a desvanecerem--se ao ritmo do arrefecimento da sopa. “Mas qual é o mal de eu querer ser como o Pires de Lima?”, ainda ouvi. Sim, vivo tempos complicados.

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