Gratuidade escolar

JOÃO CÉSAR DAS NEVES | DN 20150902
Portugal é um país socialista. Os portugueses preferem a segurança à liberdade, igualdade em vez de iniciativa, renda antes de eficácia. Todos os nossos partidos, da extrema-direita à extrema-esquerda, têm de ser, e são, socialistas, corporativos, clientelares. Todos promovem a segurança, igualdade e rendas, enquanto dizem promover liberdade, iniciativa e eficácia. "Liberal" por cá é insulto. Isto é incontornável, opção nacional que devemos respeitar. O sistema, aliás, tem óbvias vantagens, de que todos gozamos, e os correspondentes defeitos. Nestes dias as famílias vão sentir no bolso um custo anual injustificado, resultante dessa opção de fundo.
Portugal, sendo um país socialista, impôs na Constituição que: "Na realização da política de ensino incumbe ao Estado: a) Assegurar o ensino básico universal, obrigatório e gratuito... e) Estabelecer progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino" (art. 74.º n.º 2). Esta é a política confessa de todos os governos. A realidade, porém, é diferente. As aulas estão a começar e, mesmo aqueles com acesso a ensino subsidiado por impostos vão, em todos os graus de ensino e classes sociais, gastar centenas de euros em livros escolares.
O estudo exige materiais permanentes, como sala de aula, quadro e computador, e materiais consumíveis, como lápis, borrachas e papel. O livro situa-se a meio do espectro, mais próximo do extremo duradouro. Vários alunos, em anos consecutivos, podem usar os mesmos compêndios para estudar a mesma matéria, pois não se gastam como cadernos, embora não tendo a duração de paredes e mesas. Como se explica então que quase todos, em todos os graus de ensino e classes sociais, vão nos próximos dias comprar manuais novos para estudar as matérias de sempre?
A situação é tipicamente portuguesa, não se verificando na maioria dos outros países, socialistas ou liberais. Aí, através de mecanismos burocráticos ou comerciais, os compêndios escolares vão passando de uma geração para a seguinte. Em sociedades dirigistas, a escola disponibiliza os livros, como o faz para as instalações; no extremo liberal, as universidades norte--americanas têm um intenso mercado de tratados em segunda mão. Aí beneficiam os estudantes que venderem volumes usados em boas condições, os que os compram mais baratos, e até a escola que organiza a transacção. Qualquer que seja o método, a generalidade dos sistemas escolares reutiliza livros de estudo.
É verdade que por cá existem alguns arremedos destas experiências e até leis, tímidas e geralmente ignoradas, para as promover. A realidade porém impõe-se: a venda de livros escolares novinhos vai ser intensa nos próximos dias, enchendo os bolsos a autores, editoras e livrarias, obrigando as famílias a despesas desnecessárias. Porquê? Virá isto da referida ideologia nacional?
O problema está ligado à vasta e famigerada crise da educação de que se fala há décadas, e que se manifestará, também nos próximos dias, de múltiplas outras formas, da colocação de professores às novidades curriculares. Quando um problema é profundo, habitual e sem solução, isso costuma indicar que há uma causa oculta para lá da que toda a gente aponta.
Como em todos os anos, as culpas das dificuldades vão ser assacadas ao ministro da Educação do momento, eterno bombo festivo da política nacional. Mas os problemas, recorrentes há décadas, não vêm dele. É verdade que num sistema socialista, como o nosso, o ministério tem um poder desmesurado, mas isso não implica que funcione mal. O defeito é, não o regime socialista, mas a captura do sistema educativo por interesses particulares laterais à sua função.
A verdadeira finalidade da política educativa não são os alunos e famílias, mas os grupos profissionais que operam o mecanismo. Professores, funcionários, auxiliares, pedagogos, editoras, fornecedores, construtoras e múltiplos outros interesses são os que realmente inspiram as políticas e ocupam as manchetes do sector. Este é o problema que, potenciado pela tendência socialista, é realmente causado pelo compadrio, laxismo e oportunismo lusitanos. Que, afinal, é a verdadeira origem da opção nacional pelo estatismo e proteccionismo.
No caso dos manuais a situação é bem evidente. Existe um poderoso cartel no sector, cujo poder sucessivas reformas nunca conseguiram quebrar. Por melhores que sejam os ministros, os resultados ficam sempre enviesados. A compra de livros resulta de um país onde os cidadãos preferem segurança a liberdade, igualdade a iniciativa, renda a eficácia.

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