Ganhar o Euromilhões

José António Saraiva, SOL, 2015.01.01

Disseram-me há tempos que muitas pessoas que ganharam a lotaria (ou outros jogos de sorte do mesmo género, como o Totobola, o Totoloto ou o Euromilhões) vivem hoje na miséria. Contaram-me que a Santa Casa da Misericórdia pensou fazer um livro com histórias felizes de vencedores das taludas e do Totobola – mas desistiu da ideia porque, passados uns tempos, boa parte dos contemplados vivia na penúria.
Não sei se isto é verdade, mas vinha ao encontro da minha intuição. O dinheiro ganho por um acaso da sorte acaba por valer muito pouco. Porquê? Porque quem o ganha não está preparado para o valorizar e rentabilizar.
Um dia escrevi que, caso tivesse 100 milhões de euros para distribuir, entregá-los-ia a Belmiro de Azevedo – que com eles poderia fazer num ano outros 100 milhões (passe o exagero). Se, inversamente, entregasse 1 milhão de euros a 100 pobres, ao fim do mesmo tempo o dinheiro teria desaparecido e eles estariam tão pobres como antes e muito mais infelizes.
Muita gente acha que dizer isto é demagogia. E que o dinheiro deveria ser muito melhor distribuído, pois há chocantes desigualdades sociais. Ora, ninguém tem dúvidas sobre isso. Sucede que, para o dinheiro brilhar, é preciso saber usá-lo. Se boa parte do dinheiro disponível fosse orientada para o consumo, rapidamente as famílias e o próprio país abririam falência – porque é preciso poupar, investir e produzir.
É assim que os países (e as famílias) se tornam ricos – e não a consumir desalmadamente.
Duas histórias publicadas recentemente na imprensa ilustram dramaticamente esta realidade.
Uma refere-se a uma euromilionária portuguesa que, depois de ganhar o prémio, se casou com um namorado – o qual agora reclama metade da fortuna ganha por ela. A notícia rezava assim:
«Quando ganhou o Euromilhões, Maria Amélia Jesus entrou num 'conto de fadas'. Os 41,35 milhões que recebeu serviram para lhe dar uma vida boa, bem como para ajudar a família e os que, na sua localidade (Marco de Canaveses), viviam com dificuldades».
Acontece que, cerca de dois anos depois, o conto de fadas começou a virar pesadelo: o marido pediu-lhe 15 milhões de euros emprestados, passando a viver dos juros do dinheiro e a andar com 'acompanhantes de luxo', afirmando a quem o quisesse ouvir que era «o tipo mais rico da Póvoa do Varzim».
Por essa altura, ele e a mulher começaram a dormir em quartos separados. E quando Amélia o ameaçou de divórcio e lhe exigiu a devolução do dinheiro, recebeu como resposta que ele «preferia matá-la». O marido só admitiria conceder-lhe o divórcio se, para além dos 15 milhões emprestados, ela lhe desse mais dois milhões de euros.
Acrescente-se que o homem tinha uma carta na manga. De facto, quando percebeu que Amélia (que na altura era só sua companheira), tinha acertado na chave do Euromilhões, ligou para a Santa Casa da Misericórdia a reclamar o prémio – pelo que este foi entregue num cheque em seu nome. Só depois foi depositado na conta de Amélia. Assim, Abílio exibe na internet o cheque da Santa Casa e diz que o prémio foi ganho por ele. À conta disto, ainda vamos ter um imbróglio judicial...
Mais ou menos pela mesma altura, saiu na imprensa outra história relacionada com jogos de sorte. Dizia assim:
«Lee Ryan foi dos primeiros contemplados com um prémio milionário na lotaria do Reino Unido. Este homem recebeu 6,5 milhões de libras (cerca de 8,3 milhões de euros), em 1995. Comprou uma mansão, carros de luxo e até um helicóptero. Agora, perdeu tudo graças a vários erros do destino e vive num apartamento de pequenas dimensões, em Londres, com outros sem-abrigo».
 Ryan tem hoje 54 anos, e desde que ganhou o prémio já passou por tudo: viveu como um magnata, viu-se enganado, esteve preso durante 18 meses (tendo de pagar uma enorme fiança para ser libertado) e chegou a viver dois anos na rua.
Além disso, uma empregada doméstica roubou-lhe uma avultada quantia, e um filho seu foi ameaçado de rapto, tendo de contratar um ex-militar para o proteger.
Por todas estas razões, Ryan diz que para ele «o dinheiro foi uma maldição».
Como expliquei atrás, nunca tive muitas dúvidas acerca do destino destes dinheiros 'fáceis'.
Aliás, o mesmo acontece com os países. Portugal recebeu imensas fortunas durante séculos – provenientes das especiarias da Índia, do ouro e dos diamantes do Brasil, do cacau e do café de África – e o que ficou? Nada. Andamos hoje de mão estendida. E porquê? Porque o dinheiro que não resulta do trabalho produzido dentro dos próprios países e do esforço dos seus cidadãos muito dificilmente se torna rentável.
Se um país não consegue produzir os bens necessários para poder viver, também não consegue rentabilizar e aproveitar bem o dinheiro que cai do céu.
As receitas das colónias portuguesas nunca foram aplicadas de forma reprodutiva. Tal como Ryan, que comprou mansões e carros de luxo, Portugal desbaratou dinheiro em palácios e obras de fachada, e nunca investiu em actividades rentáveis.
Curiosamente, a obra que na primeira metade do séc. XIX mais contribuiu para a salubridade e o crescimento de Lisboa, o Aqueduto das Águas Livres, não foi construído com dinheiro do Tesouro mas com um imposto cobrado aos cidadãos e criado para o efeito.
O Tesouro só se preocupava com as obras de ostentação: o Convento de Mafra, o Palácio da Palhavã, o Palácio de Queluz, o Palácio das Necessidades, além de centenas e centenas de igrejas espalhadas pelo país inteiro luxuosamente decoradas com talha dourada.
Enquanto uns países lançavam as bases da futura indústria, do moderno comércio, da agricultura, semeando para colher, Portugal enterrava os milhões em luxos sem retorno. Tudo ficou imobilizado naquelas obras. Que constituem um património rico numa nação pobre. Outros, como os holandeses, seguiram o caminho contrário: construíram uma nação rica embora sem património.
E se a nossa maneira de ser não deixa de ter os seus méritos, também tem um preço elevado.
O dinheiro que não vem 'de dentro', das estruturas produtivas existentes em cada país, do trabalho dos seus cidadãos, acaba por desaparecer como a chuva na areia – e, tal como esta, não deixa à superfície qualquer rasto.
Ou então, o rasto é de tristeza e desânimo – como nos casos de Amélia e de Ryan. Que, mesmo assim, ainda não são dos piores. Outras histórias semelhantes acabam em assassínios e suicídios.

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