A natureza

A verdadeira noção do que é a natureza só emerge naqueles que lá acabaram por acaso ou contra a sua vontade: porque se perderam, porque um avião se despenhou nos Andes ou um barco não saiu do Polo Sul

Existe a noção de que o contacto com a natureza é benéfico. As crianças e os adultos são encorajados a apanhar ar, a subir a árvores e a tirar fotografias. No entanto, como observou um escritor, a natureza é muito desconfortável. As pedras onde nos sentamos raramente são direitas, há lama nos caminhos e além disso insectos e bicicletas. Noutras partes do globo há feras e peixes. Como se explica então que o contacto com uma coisa desconfortável possa ser considerado benéfico?
A resposta é que, podendo ser a natureza desconfortável, nos nossos contactos com a natureza fazemos o possível para minorar esse inconveniente. A maior parte das coisas que consideramos ajudas ao nosso contacto com a natureza são no fundo protecções para o desconforto desse contacto. Pense-se em botas adequadas a caminhadas, em guias sobre pássaros ou cogumelos, ou nessa invenção tão complexa conhecida genericamente como campismo.
O efeito de um contacto próximo com as irregularidades da paisagem é devastador para os pés. Botas adequadas permitem evitar bolhas e amputações, o que parece razoável. Mas poderemos ainda chamar contacto àquilo que pés bem calçados experimentam contra esses solos agrestes? Quando no nosso guia identificamos como Cardinalis cardinalis o que a olhos impreparados parece simplesmente um pássaro encarnado, estamos naturalmente a substituir o nosso alarme, e aliás a natureza, pelos prazeres, que não exigem contacto especial, do conhecimento. Do mesmo modo, a conclusão de que um ninho de Amanita phalloides é afinal de Amanita lanei, que qualquer guia de cogumelos ajuda a esclarecer, é a diferença entre a morte certa e a perspectiva de um risotto.
Resta o campismo. Todos os dias milhões de pessoas decidem aprender a acender uma fogueira com paus ou pedras, e a ignorar com deliberação a diferença entre cru e cozido. Passam várias noites a tentar dormir com pessoas que passam essas noites a mexer-se e a tocar viola. E sobre tudo isso, um tecto, suficentemente inepto para haver alguma possibilidade de desconforto, e suficientemente epto para que a possibilidade não seja letal. Não menciono os casos sedentários de campismo, que nenhum dos seus practicantes sonha em associar a qualquer ideia de natureza.
A diferença entre sair de casa carregados de equipamento para qualquer eventualidade e ficar em casa a ver um filme sobre o que alguém faria se saisse de casa em circunstâncias semelhantes é assim meramente uma diferença de grau. Nenhuma destas possibilidades proporciona grande contacto com a natureza: ou, melhor, ambas proporcionam apenas contacto com ideias da natureza. Porém, uma ideia da natureza é como um par de botas ortopédicas, ou um impermeável. A verdadeira noção daquilo que é a natureza só emerge naqueles que lá acabaram por acaso ou contra a sua vontade: porque se perderam na floresta, porque um avião se despenhou nos Andes ou um barco não conseguiu sair do Polo Sul.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António