Generation gap
Inês Teotónio Pereira
ionline 6 Dez 2014
ionline 6 Dez 2014
Opiniões arrojadas, pouco consensuais e que vão contra o
mainstream só se podem ter nos cafés, não nos jornais - não vá alguém ler
A sociedade portuguesa vive amarrada a uma série de
preconceitos dos anos 70 e 80 e arrepia-se de cada vez que alguém se atreve a
pisar o risco. Há coisas que não se devem escrever, há conceitos de que não se
duvida, há sistemas que não se questionam e há mesmo opiniões que não se podem
ter. Desde que comecei a trabalhar em jornais - há 20 anos - que a cartilha dos
que opinam, sentenciam e protegem a moral e os bons costumes lusitanos é a
mesma, e os poucos que vão aparecendo têm de a seguir ou vêem o seu espaço
limitado, podendo ser legitimamente insultados. Sim, existem honrosas excepções
- como já era, há 20 anos, "O Independente" -, mas o bom povo
português não aprecia modernices e as excepções dificilmente deixam de o ser
(basta espreitar a caixa de comentário de Henrique Raposo no
"Expresso" para perceber).
Não é preciso ser sociólogo para constatar que esta é a
realidade em que ainda hoje vivemos: basta abrir os jornais e ouvir os fóruns
dos últimos dias para retirar vários exemplos. Mas o mais elucidativo de todos,
que espelha de forma fidedigna esta vaca sagrada do anacrónico "sempre foi
assim", são as opiniões sobre a prisão de Sócrates. João Miguel Tavares,
uma das excepções, atreveu-se a presumir a culpa, em vez da inocência, do ex-primeiro-ministro
e, exercendo a sua liberdade, escreveu isso mesmo nas páginas do
"Público". Como era de esperar, os donos da opinião e a guarda
pretoriana dos preconceitos do século passado enraiveceram-se e saltaram-lhe ao
pescoço, insultando-o de quase tudo. João Miguel Tavares pisou o risco porque
não obedeceu a uma regra sagrada: a do respeitinho pelos políticos consagrados.
E esta é a vaca mais sagrada de todas. Opiniões arrojadas, pouco consensuais e
que vão contra o mainstream só se podem ter nos cafés, não nos jornais - não vá
alguém ler. Pode não se ter a mesma opinião de JMT, mas não é coerente, em nome
da liberdade, condená-lo por tê-la. E esta fronteira, quase invisível, não pode
em circunstância alguma ser móvel.
Portugal vive, assim, inclinado ao respeitinho e aos dogmas
invioláveis, em que a liberdade tem donos, assim como a igualdade, a moral e os
costumes. É assim porque sim e o regime tem os dias contados se deixar de ser
assim, reclamam os nossos senadores da opinião.
No entanto, o país real, aquele que nos vai pagar as pensões
e eleger os governos nas próximas décadas, vive noutro mundo e, felizmente, não
entende esta ditadura de preconceitos. Nos últimos 20 anos, Portugal viu
crescer uma geração que se habituou a ver as fronteiras muito para além das
geográficas, que tem como certo que o mundo é bem mais pequeno e acessível do
que na altura dos seus pais, que escolhe sem a ajuda de editores ou
programadores a informação, séries e programas que vê, que não encara a língua
como uma barreira ou o entretenimento como um luxo. É por isso uma geração
totalmente livre, que escolhe aquilo em que acredita e que não precisa nem quer
que lhe tracem limites politicamente correctos. A informação que recebe, a
educação de que precisa e as ambições que tem não são compatíveis com
condicionalismos à sua liberdade que, não sendo legais, são intrinsecamente
culturais. A distância entre aquilo que se escreve ou comenta daquilo que é
realidade desta geração é abissal, e os dogmas das décadas de 70 e 80 são, para
estas crianças e jovens, qualquer coisa tão desajustada como a revolução da
minissaia. Eles não entendem o que é o respeitinho e, por isso, não respeitam
quem entende.
João Miguel Tavares, Henrique Raposo, Rui Ramos e outros
tantos dão-nos um arzinho de como é agradável viver num mundo onde se pode ter
opiniões honestamente livres e são a prova de que, se alguma coisa está em
crise, não é o regime, mas sim o status
de uma geração inteira de guardas pretorianos do politicamente correcto. É que
todos os dias nasce mais uma criança.
Comentários