Contra o duplo padrão


A tolerância e a contenção que é tida e mantida para com os políticos da esquerda ou centro-esquerda não é igualmente praticada com os políticos de direita ou centro-direita.



1. João Carlos Espada chamava ontem a atenção para algo que, na verdade, se vê melhor, quando se vê de fora: a maturidade com que as instituições e os seus diferentes protagonistas, a opinião pública e os responsáveis políticos lidaram com um transe tão retumbante e devastador quanto é a detenção e ulterior prisão preventiva de um antigo primeiro-ministro.
Passado o enorme choque inicial, para lá da inevitável e expectável concentração mediática, cada um foi assumindo a necessidade de um discurso responsável, sem com isso misturar sentimentos de proximidade, indiferença ou hostilidade. A prudência nas declarações, o cuidado em salvaguardar a presunção de inocência e o direito de defesa, o esforço em manter a separação da esfera política e da esfera judicial foram uma constante nas tomadas de posição oficiais ou oficiosas dos titulares de cargos políticos ou institucionais. Essa maturidade institucional – que, ao fim, redunda numa prova de confiança na imparcialidade e na independência do poder jurisdicional – não impediu, naturalmente, uma ou outra reacção mais emocional ou acalorada (pense-se na alocução de Mário Soares à saída da visita). Mas a partir do momento em que está criado um clima e um ambiente geral de contenção e de responsabilidade, a erupção de uma declaração mais encarniçada é encarada como um gesto pessoal, afectivo e emotivo, e passa a ser lida com algum "desconto", não perturbando aquela percepção mais global. Nada impede, claro está, que no debate público, já fora da esfera institucional, se terçam armas em redor de aspectos ou dimensões do processo. Compreender essa discussão, mesmo que mais acesa ou veemente, como uma discussão perfeitamente normal e cabível faz também parte desta experiência de maturação democrática. A tranquilidade de que fala Espada, a manter-se – e tem todas as condições para se manter –, não se atingiria facilmente noutros países e noutras paisagens democráticas europeias.
2. Há, no entanto, um ponto que deve ser reconhecido e que tem de ser outorgado como mérito aos responsáveis da actual maioria (PSD/CDS) e até aos membros do Governo. É que, em Portugal, funciona amiúde um duplo padrão. A tolerância e a contenção que é tida e mantida para com os políticos da esquerda ou centro-esquerda não é igualmente praticada com os políticos de direita ou centro-direita. Se, por um qualquer acaso, justa ou injustamente, a situação que impende hoje sobre José Sócrates tivesse impendido sobre um alto responsável do PSD ou do CDS, não tenho a certeza de que concitasse o mesmo e exacto grau de maturidade institucional e de tranquilidade democrática.
Em primeiro lugar, por banda dos responsáveis políticos da esquerda radical e, em particular, do agonizante Bloco de Esquerda (nesta como noutras matérias, o PCP revela-se sempre mais cauteloso). Os cuidados que gente do Bloco exibe, a preocupação com o respeito pelos pilares do "due process" e até as dúvidas que exprime contra o risco de "judicialização" da política não as mostrou no passado em casos em que, do seu ponto de vista, estaria em jogo o outro lado da barricada. Pense-se no que disseram sobre o BPN ou no que dizem sobre o caso BES, em que as ditas garantias fundamentais – tendo em conta a reputação capitalista dos seus putativos titulares – afinal já quase nada valem. Ou o caso dos submarinos, sobre o qual se estendem e especulam sem nenhum óbice ou travão. E basta lembrar a retórica exibida, ainda há magros dias, sobre a operação labirinto e os vistos gold, para logo perceber o papel instrumental que, no fundo, dedicam ao respeito por aqueles sagrados princípios. Com efeito, chego mesmo a temer que, por detrás deste evidente duplo padrão, haja autenticamente uma narrativa única. Uma narrativa em que o poder judicial seria mais um instrumento na mão dos poderosos e perseguiria levianamente os mais pequenos indícios de crime à esquerda, mas contemporizaria fartamente com indícios ostensivos quando o crime provinha do capital ou provinha da direita.
Em segundo lugar, em menor grau, mas ainda passível de censura, a mesma crítica vale para muitos dirigentes e, em especial, comentadores da área socialista. Quem os vê perorar sobre as questões dos submarinos ou sobre o caso BES e as suas vias de solução ou até sobre a eterno tema dos estaleiros de Viana, fica deveras surpreendido com a delicadeza e o apego aos cânones do Estado de Direito de que acabam de dar provas na situação de Sócrates. Será que as suspeitas e suspeições naqueles casos e em tantos outros do mesmo jaez, que aqui e ali vão aparecendo, não põem em causa igualmente a reputação pessoal, os direitos de defesa, a presunção de inocência dos supostos envolvidos? Aqui não existe a narrativa de uma eventual justiça de classe, mas subsiste uma apetência para o "aproveitamento" político dos casos judiciais, que não pode deixar de ser verberada. E pode subsistir também, ainda que inconsciente ou recalcada, a ideia de que os políticos de esquerda são mais sérios e honestos de que os políticos de direita; que os primeiros cultivam os valores e os segundos zelam pelos interesses. Ora, um horizonte de crenças desta natureza não ajudará decerto a eliminar a cultura do duplo padrão e os seus afloramentos.  
Em terceiro lugar, num plano muito similar ao que acaba de suscitar-se, vem também a corrente de muitos dos comentadores da nossa imprensa e das nossas televisões. São sempre lestos a denunciar a lentidão e a reverência da nossa justiça para com os poderosos e os ricos, em nada se coibindo de lhes pôr os nomes e de consubstanciar as suspeitas, mas quando irrompe um caso com estes contornos parecem ter arrepiado caminho e invertido o sentido dos comentários. Da crítica da justiça inerte e complacente passaram, num ápice, para a crítica da justiça justiceira e revanchista.   
Creio que andámos já muito caminho rumo a essa maturidade democrática. Mas a tentação do duplo padrão é ainda um resquício de imaturidade.

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