Chegou a altura de escolher entre mais impostos ou mais deste "Estado social"

Público 2012-11-02 José Manuel Fernandes
O debate devia ter começado há ano e meio, mas é melhor tarde do que nunca. E chegamos a ele por causa do cansaço com tantos impostos

O jornalista, proclamou solene o douto professor universitário, é "um funcionário da Humanidade". A frase é bonita, soa bem e a Fátima Campos Ferreira não deixou de acenar com a cabeça. Infelizmente, a frase não quer dizer nada. Nem responde ao que devia estar a ser discutido naquele Prós e Contras: se o jornalismo é importante, como é que o pagamos? É que eu, por exemplo, não me estou a ver a ir pedir o meu cheque às Nações Unidas.

O nosso espaço público está cheio de frases como aquela: grandiloquentes, capazes de arrancarem aplausos às plateias, mas mistificadoras, quando não abertamente idiotas. Lembram-se, por exemplo, de quando se andou para aí a glosar a ideia de que "o lugar onde se nasce nunca devia morrer" a propósito da Alfredo da Costa? Também era uma frase bonita, que dava títulos lindos, mas tão disparatada como capaz de bloquear qualquer debate racional.

Mais recentemente, o país comoveu-se com um enfermeiro que pediu ao Presidente que não criasse um "imposto sobre as lágrimas e muito menos sobre a saudade" e sucederam-se programas indignados sobre essa indignidade que seria ter de emigrar. Em momento algum, talvez em nome das tais lágrimas e da tal saudade, vi alguém interrogar-se sobre o facto de o número de enfermeiros em Portugal ter duplicado entre 1999 e 2010 (ver Pordata) e de, ao mesmo tempo, se terem multiplicado os cursos superiores de Enfermagem (muitos criados para satisfazer clientelas locais) que lançam para o mercado de trabalho milhares de profissionais que o sistema de saúde já não consegue absorver. Nada disso. O que dominou foi outra frase grandiloquente: "Estamos a perder a geração mais qualificada de sempre". É possível, mas de novo ninguém se interroga sobre se essa geração terá as qualificações certas ou se, em muitos casos, não se fica pelas qualificações que foram mais convenientes às carreiras dos senhores professores universitários.

Confesso que eu, "funcionário da Humanidade", tenho cada vez menos paciência para a esquizofrenia destes discursos que saltitam de emoção em emoção sem nunca colocar os pés na terra. É que isso tem um custo muito pesado quando chega a altura de perceber que caminho seguir.

Ferro Rodrigues, na intervenção que fez no encerramento do debate parlamentar sobre o Orçamento, acusou o Governo de "tentar pôr a classe média contra o Estado social". Há uma certa verdade nesta afirmação, mas não aquela a que o antigo líder do PS queria chegar. O que está a colocar a classe média contra o Estado social são os impostos que vão ser pagos em 2013. Essa é que é a grande novidade da actual realidade orçamental e política: pela primeira vez em muitos, muitos anos, começa a ficar evidente que, para mantermos o actual Estado social, temos de pagar impostos e mais impostos e mais impostos. Talvez tenha sido essa a perversidade (ou a inteligência) do ministro das Finanças: tornar evidentes, nos bolsos da classe média, os custos do Estado que temos.

Num país menos esquizofrénico e com menos tendência para se deixar embalar em frases sonoras, a famosa discussão sobre as funções do Estado - com ou sem "refundação" pelo caminho - há muito que se teria iniciado. E ter-se-ia iniciado exactamente pelo Estado social, não fosse o tema ser tabu.

Esta discussão devia ter sido lançada pelo Governo há ano e meio, mas se calhar só vai ser possível porque esbarrámos no muro dos impostos. Já em 2004, o infelizmente desaparecido Ernâni Lopes, ministro das Finanças no momento de aperto de 1983/85, disse que "o modelo social europeu ou muda ou desaparece". Foi numa entrevista a este jornal e não podia ter sido mais claro: "Não podemos esquecer que toda a lógica do modelo social europeu saiu de um período excepcional da História, que vai de 1947 a 1973, durante o qual o PIB das economias desenvolvidas cresceu cinco por cento ao ano, consistentemente. Isso hoje esqueça..."

Exacto então, ainda mais exacto hoje. Mas, até hoje, assumindo a posição confortável de "enquanto o pau vai e vem folgam as costas", a opinião pública e a maioria dos que fazem opinião não quis saber. Ainda hoje há quem se recuse a aceitar que acabaram de vez os anos gloriosos do crescimento económico exponencial. Há mesmo quem, como um dos responsáveis pelo buraco em que estamos enfiados - o antigo secretário de Estado adjunto do Orçamento nos governos de Sócrates, Emanuel Santos -, escreva livros a defender esse tal quimérico crescimento. Um quarto da nossa dívida pública, mais de 50 mil milhões de euros, foi desbaratado entre 2008 e 2010 pelos governos em que ele participou precisamente a tentar estimular o tal crescimento, mas a única coisa que cresceu foram as dívidas, os juros e, vê-se agora, a teimosia de quem não quer mudar nada.

Durante anos, os portugueses ficavam furiosos de cada vez que fechava o mais pequeno e desajustado serviço de saúde, a escola mais isolada e inapropriada ou a esquadra de polícia mais podre. Os portugueses - sobretudo os portugueses da classe média - estão agora furiosos com o Governo por causa dos impostos. Ainda é um sentimento confuso, mas é uma mudança de estado de espírito que até Ferro Rodrigues foi capaz de perceber. E quando se está furioso com os impostos fica-se muito mais intolerante para com os gastos do Estado, mesmo quando estes são no Estado social.

É por isso que o PS hesita na retórica que há-de utilizar, uns dias mais inclinado para a esquerda ululante que diz não a tudo, outros dias tentado a não quebrar todas as pontes com o centro-direita e a troika. Mesmo assim, não acredito que o PS possa ficar de fora de um novo consenso derivado desta dura realidade de que "não há dinheiro", ou pelo menos não há dinheiro para tudo. Mas não estou optimista quanto ao rumo da discussão.

Contudo, é bom ter consciência de como é estreito o nosso caminho e como pode ocorrer um desastre ainda bem pior do que o Orçamento de 2013. Ouvi, por exemplo, a esquerda ululante repetir, dentro e fora da Assembleia, que não devemos pagar os juros da dívida (a taxa média dos nossos juros está nos 3,5%, mas há quem considere isso usurário e especulativo) e que, desde que os impostos paguem os salários e as pensões, podemos dispensar o "financiamento à economia, que não é mais do que financiamento aos bancos". Pior: senti que essas teses tinham acolhimento junto do jornalismo de microfone estendido e neurónios bloqueados, assim como de sectores do PS. E pasmei.

As pessoas talvez não saibam, mas na Grécia o Estado social não se está a desmoronar porque o Orçamento transferiu menos fundos para a saúde, por exemplo - os cuidados de saúde estão a cair a pique porque ninguém empresta dinheiro aos gregos, estes já nem remédios conseguem comprar às farmacêuticas e vão fazer fila de madrugada para as farmácias para comprarem alguma das raras embalagens que lá vão chegando. Se Portugal seguisse os cantos de sereia dos que se indignam contra o "financiamento da economia" chegaria muito depressa ao mesmo desastre: ainda se extorquiriam impostos para pagar os salários de médicos e enfermeiros, mas não haveria medicamentos ou intervenções cirúrgicas. O Estado social não se reformaria, entraria em colapso. E nem sequer os mais impostos que viriam a seguir nos salvariam.

Talvez fosse desejável ter esse debate noutras condições políticas e com um Governo com mais autoridade, mas é o que temos. Tal como temos um PS balcanizado e a esquerda arcaica de sempre. Nós somos nós e a nossa circunstância, e a actual circunstância empurra-nos, ao menos, para o debate há muito adiado. Ainda bem, acrescenta este "funcionário da Humanidade".

Comentários

Anónimo disse…
Gostei deste artigo. Não está alicerçado em falácias, aponta a realidade. Considero que isto é que é jornalismo sério. Mas, pergunto, será que há suficiente consciência de que José Manuel Fernandes tem razão? Quem responderá ao seu apelo para a realização de um debate sério, mesmo que tardio sobre "Mais impostos ou mais deste Estado social"? - M. Teresa Carvalho
Francisco Melo disse…
«Pela primeira vez em muitos, muitos anos, começa a ficar evidente que, para mantermos o actual Estado social, temos de pagar impostos e mais impostos e mais impostos.» (A irresponsabilidade política de longos anos...)

Eu não sigo ideologia nenhuma, sigo o EVANGELHO, e é em função disso que posso dizer o que digo. Em primeiro lugar, procurando imitar DEUS, devo respeitar a liberdade dos outros, não devo impor, mas propor. Eu pergunto se o chamado «Estado Social» - que mata nascituros e faz outras coisas, «social», que mentira! -, tem que seguir as idéias da esquerda e está terminanmente proibido de seguir idéias da direita? Embora não esteja na Constituição, parece que, na democracia europeia, todos têm direito a dizer o que pensam e todos estão obrigados a aceitar a ideologia da esquerda, ou não pode ou não poderia existir «Estado Social».

Mais coisas poderia dizer, mas não me alongo. Há causas económicas, sociais, etc, para esta crise mundial, mas faço questão de dizer: o mundo inteiro, apesar de cego para ver, está a pagar o preço de entender que pode construir o paraíso terrestre sem DEUS, e até contra DEUS, na sua cultura da morte. Não há NADA (nem argumento nenhum) que justifique a cultura da morte, porque se se tivesse acolhido JESUS CRISTO, tais problemas não existiriam.

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