Barbosa de Melo: nos 80 anos de um "homem-bom"

Público 2012-11-02 Paulo Rangel

1. Recordo-me daquele Outono de 1990 em que Barbosa de Melo entrava numa pequena sala da Católica do Porto para dar as aulas da cadeira de Ciências da Administração. E de começar, com o seu jeito afável e paternal, lançando a voz pausada e grave numa toada envolvente e penetrante. Assim que iniciava, tudo se passava como se não houvesse tempo ou houvesse, afinal, todo o tempo do mundo. E, a pretexto das ciências da administração, administrava ciência e administrava-a paciente e sabiamente. Viajava da mais avançada teoria da física ou do último modelo da sociologia das organizações até à pintura mais erudita ou ao versejador mais trivial. Aristóteles cruzava-se com António Aleixo, Boticelli namorava Agustina, Umberto Eco jantava com Fernão Lopes, D. Quixote trabalhava com Enrico Fermi. Lembro-me de ter ouvido dissertar abundantemente sobre os Federalist Papers, a obra de Hannah Arendt ou o pensamento sistémico de Niklas Lhumann - pontos que me haveriam de marcar indelevelmente. Aquelas lições, com o seu inesgotável abrir de janelas e rasgar de varandas, com as passagens directas e discretas dos clássicos da literatura aos mais arraigados costumes populares portugueses, pareciam, por vezes, uma espécie de "radicação" ou "incarnação" humana da Internet - uma rede interactiva de conhecimentos avant la lettre. E também por aqui intercedia uma profunda provocação ao conservadorismo pedagógico, uma impressionante sintonia com o ar do tempo, uma compreensão consciente do desastre epistemológico e antropológico que representa a especialização e a segmentação excessiva dos saberes. E tudo isto se declinava com uma simplicidade e uma singeleza desconcertantes, a ponto de nos fazer crer que afinal o conhecimento das essências era tangível (Kant, de um modo ou de outro, estava sempre lá...). Aquelas aulas eram, pois, "universidade" na mais pura essência, na melhor senda do que podia e poderá ser um "neo-humanismo"; um humanismo praticado, mas outrossim pensado, intencionado e teorizado.

2. Barbosa de Melo distingue-se, evidentemente, pelos seus escritos, muito dispersos, muito fragmentários, mas de uma profundidade e de uma legibilidade assinaláveis. Vão dos domínios mais técnicos do direito administrativo e constitucional - mas aí sempre com um lastro e um rasto cultural incomparáveis - a temas, na altura, de vanguarda, como a concertação social e as matérias comunitárias europeias. Destaco, por se tratar de um clássico da filosofia política portuguesa, o ensaio Democracia e Utopia, no qual sobrelevam as suas melhores qualidades. Tornou-se, porém, conhecido do grande público pela mão da actividade política; onde pontifica como um político de excepção, por ser capaz de casar os grilhões da acção política com a preocupação permanente de a manter ligada à produção de pensamento. Essa capacidade esteve sempre presente do tormentoso nascimento do PPD à presidência do Parlamento, passando pelo apoio às revisões constitucionais ou pela representação autárquica na sua muito amada Penafiel. O país ganhava muito, ainda hoje e agora, se quisesse aproveitar esse cada vez mais raro talento. E não pode passar em claro, por ser uma marca inapagável do seu empenhamento cívico e humano, a militância e a reflexão cristã. Poucos intelectuais, fora das vestes eclesiásticas, terão contribuído tão intensa e luminosamente para o debate e o esclarecimento da nossa relação, culturalmente enraizada, com o divino e o religioso.

3. Barbosa de Melo é um viajante. Mas mais do que um andarilho do espaço, é um passageiro do tempo, um navegador dos tempos. Nele, Homero e Einstein dialogam, Buda e Tocqueville interagem, o padre António Vieira e Freud encontram-se, Gil Vicente e Churchill conhecem-se, porque só o humano lhe interessa. Não é, por isso, um cosmopolita; é mais do que isso, muito mais do que isso: é um "cronopolita" - um cidadão do tempo.

Mas mais do que o detentor de um intelecto brilhante e de uma cultura ímpar, Barbosa de Melo é - como sabem todos os que o conhecem - um homem recto, justo e bom. Se tivesse de escolher um elogio, pegava nessa pista da nossa vida medieval, que ele tão bem conhece, e escolhia o epíteto de "homem-bom". Barbosa de Melo é, neste preciso dia em que perfaz 80 anos, um senador da república, um reputado professor e um sage da melhor linhagem filosófica. Mas, bem mais raro e bem mais precioso do que tudo isso, é um homem bom. Um "homem-bom" de Lagares, Penafiel.

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